Mostra revive filme raro de Sérgio Ricardo
Em cópia restaurada, 'Esse Mundo É Meu' integra retrospectiva do cinema novo em cartaz na Cinemateca Brasileira
Estreia da obra em 1º de abril de 1964 foi ofuscada no país pelo golpe militar; longa recebeu elogios em festivais no exterior
No dia 1º de abril de 1964, o Brasil amanheceu sob o som dos fuzis e o retinir das baionetas. Houve choques na Cinelândia, a sede da UNE foi queimada, o presidente João Goulart deixou Brasília.
Nos cinemas, estreou "Esse Mundo É Meu", primeiro longa-metragem de Sérgio Ricardo --compositor, cantor, ator, diretor, dramaturgo e hoje, aos 82 anos, artista plástico que dedica especial carinho à pintura.
"O filme teve uma carreira comercial irrisória. Estreou junto com o golpe militar e aí toda a carreira do longa não aconteceu naquele momento", diz Sérgio Silva, programador da mostra Retrospectiva Cinema Novo, em cartaz na Cinemateca Brasileira, que tem "Esse Mundo É Meu" como um de seus destaques.
"Pouquíssimo exibido, está fora de circulação há anos", diz Silva, contando que o trabalho de reconstrução da obra --apresentada em cópia nova de 35 mm-- foi feito na própria Cinemateca.
O filme foi considerado pela importante revista francesa "Cahiers du Cinéma" um dos melhores de 1964 no mundo --a atuação de Antonio Pitanga, a câmera de Dib Lutfi e a montagem de Ruy Guerra contribuem para isso.
Filmado em preto e branco, o longa faz o contraponto das histórias de dois casais de favelados. Discute relações de poder, independência da mulher, aborto, lutas trabalhistas. E também amor, sofrimento, liberdade, busca da felicidade.
"Este filme representa minha entrada definitiva no cinema novo brasileiro, junto com os demais craques do movimento da época", diz o diretor à Folha, por e-mail.
"Feito com a cara e a coragem, todo improvisado, revelou, inesperadamente, o meu pendor para a arte mais completa, em que pude condensar minhas várias formas de trabalhar com ela: a música, a pintura, a literatura, a atuação, a direção cênica, que fizeram de mim um artista polivalente", completa ele.
"Esse Mundo..." começou a ser feito no intervalo entre viagens: Sérgio Ricardo, que estava nos EUA, teria 15 dias de folga antes de embarcar para um tour na Riviera Francesa. Tratou de se mandar para o Rio e iniciar a produção.
IMPROVISOS
"Eu inventava as cenas na hora de filmar, sem que ninguém soubesse o que ia acontecer", conta Sérgio Ricardo no livro "Canto Vadio".
Em contrapartida à sua inexistente carreira comercial no país, o longa circulou pelo mundo, com exibições no Festival Internacional de Filme no Líbano e na Mostra do cinema novo em Gênova.
E recebeu elogios de Glauber Rocha, com quem, ainda em 1964, o compositor teria talvez sua mais importante participação no cinema, criando a música de "Deus e o Diabo na Terra do Sol".
"A partir daí", diz Sérgio, "descobri meu verdadeiro caminho". "Infelizmente, dada a incompetência como produtor, não pude dar a continuidade que desejaria. Fiquei, embora premiado e considerado um artesão do cinema, meio bissexto."
Para ele, "Esse Mundo..." não perdeu nada com a passagem do tempo. "Tenho muita alegria e me orgulho de ter realizado este meu primeiro atrevimento cinematográfico. Ao vê-lo hoje, sinto que sua linguagem está atual e nada acrescentaria se tivesse que o fazer de novo."