'Não é possível saber quantos foram afetados pelo césio-137'
Em 1987, eu tinha 13 anos e voltava da escola para o apartamento em que morava com a minha mãe, em Goiânia. Assim que dobrei a esquina de casa, vi um aglomerado de pessoas formando uma barreira que ia até o portão do estacionamento do prédio.
Imediatamente os pelos da minha nuca ficaram eriçados e meu estômago foi tomado por uma sensação de gelo escorrido. Tive certeza de que ocorrera uma tragédia.
Em questão de minutos fiquei sabendo: o zelador do meu prédio disse que a polícia apreendera uma substância proibida no ferro-velho que ficava na frente de casa.
Nesse dia as pessoas que moravam no ferro-velho foram retiradas de lá, as que sobraram após as primeiras vítimas diretas terem sido isoladas em tratamento quase secreto.
Um ou dois dias depois, os técnicos com roupas à prova de radioatividade chegaram, com suas máscaras de apicultores. A área foi isolada e todos tivemos que sair de nossas casas. A televisão reportava a coisa sem parar.
Cientistas do Japão e da União Soviética haviam chegado ao país. Filas colossais de pessoas, entre as quais eu, minha mãe e minha irmã, se formaram no ginásio Rio Vermelho, cinco quadras acima de casa. Homens de máscara passavam a maquininha para verificar se estávamos contaminados com o césio.
Minha mãe, minha irmã e eu passamos no teste, e ficamos um semestre no apartamento de minha avó, nos EUA.
Em "Vozes de Tchernóbil", Svetlana Aleksiévitch diz que quatro dias após o acidente na usina soviética –quase um ano e meio antes do de Goiânia–, nuvens de césio-137 e urânio-235 já estavam na China, na África e no céu de vários países europeus.
Minha mãe trabalhava na Procuradoria do Estado. Ela conta que um colega comprou parte da substância radioativa dos moradores do ferro-velho. Ele e sua irmã a levaram nos bolsos das calças.
Imagino quantas pessoas que, de uma forma ou de outra, tendo comprado ou tendo catado o césio, andaram nos ônibus ou a pé pelas calçadas, frequentaram locais públicos, sem terem nenhuma ideia de que estavam distribuindo irrestritamente para todas as pessoas da cidade uma régua de redução de expectativa de vida a curto ou médio prazo.
Esse colega de minha mãe teve parte da coxa direita queimada e passou por uma cirurgia de remoção de toda a porção cinza verrucosa em que se tornara sua carne; a irmã desse homem, segundo me informou minha mãe quando liguei a ela para que me reconfirmasse a história, morreu alguns anos depois, vítima de câncer.
A filha desse advogado, que também teve contato com a radiação, sofreu várias deformações pelo corpo.
Nunca vai ser possível saber ao certo quantas pessoas realmente morreram em decorrência desse acidente, ainda mais quando penso quão amadorísticas e omissas foram as reações do Estado para remediar e conter a progressão do acontecido.
Até o isolamento das áreas afetadas não era um isolamento em si. Alguns dias depois, passando à noite pelas ruas laterais ao meu prédio interditado, vi pelas janelas acesas que algumas pessoas não haviam saído e que o zelador e sua esposa continuavam lá.
CHARLLES CAMPOS é médico veterinário e dono do blog que leva seu nome
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade