Descrição de chapéu The New York Times

Os 'gurus' da saúde têm muito entusiasmo, mas pouca ciência

Crédito: Marcus Leoni/Folhapress Artista plástico segura faixa pela liberação da fosfoetanolamina
Artista plástico segura faixa pela liberação da fosfoetanolamina

LISA PRYOR
DO "NEW YORK TIMES"

Talvez um dia, quando eu tiver décadas de experiência como médica e mais treinamento em minha área de especialização, eu possa falar sobre questões de saúde com o tom de autoridade de um naturopata qualquer.

Foi o que passou por minha mente há pouco tempo, enquanto eu vagava pelo mundo on-line dos profissionais de saúde alternativa, blogueiros do bem-estar, chefs de comida integral e Gwyneth Paltrow.

Eu não estava procurando. Chegou até mim por algoritmos das redes sociais. O Facebook ofereceu um anúncio em vídeo de uma "especialista em saúde hormonal feminina" com "consultório" próprio. Não era uma endocrinologista, mas uma naturopata.

Ela falava com confiança sobre exames de tireoide, apesar de a maior parte do que ela dizia estar errada. E lá fui eu pelo buraco do coelho da internet.

Uma visão tradicional da profissão médica é que os médicos são exigentes e autoritários, e até arrogantes. Embora alguns indivíduos se encaixem nessa descrição, na verdade, a profissão é construída sobre dúvidas.

A maioria dos médicos, especialmente os bons, têm uma aguda consciência dos limites de seu conhecimento. Aprendi com aqueles muito mais experientes e qualificados que eu que a humildade é algo a ser cultivado ao longo do tempo, e não perdido.

Nosso campo é construído em torno de tentar provar que estávamos errados. Nos hospitais fazemos reuniões de morbidez e mortalidade para tentar mostrar onde falhamos, o que precisamos mudar, como podemos melhorar. Nosso trabalho no hospital é auditado para identificar onde ficamos aquém de nossos ideais. Por meio da pesquisa científica, tentamos invalidar a eficácia dos tratamentos. Nossas falhas são expostas de dentro para fora.

É da natureza da medicina baseada em evidências que as práticas mudem conforme surgem novas evidências.

Também é o caso de outros profissionais de saúde cuja prática se baseia na ciência, como nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e psicólogos qualificados. As diretrizes são revistas, os conselhos são revertidos –sobre pressão sanguínea, dieta, substituição hormonal, prescrição de opioides. Isso pode ser enormemente frustrante para os pacientes, mas é o que devemos fazer para oferecer o melhor tratamento possível.

ENTUSIASMO

Diante dessas dúvidas, não é de surpreender que alguns indivíduos, mesmo os inteligentes e instruídos, sejam contagiados pela confiança entusiástica dos gurus da saúde, que têm uma paixão intensa, enquanto os qualificados carecem de convicção.

É um viés cognitivo conhecido na psicologia como efeito de Dunning-Kruger.

Resumindo: quanto menos você sabe, menos é capaz de reconhecer o quão pouco você sabe, portanto menor a probabilidade de você reconhecer seus erros e fracassos. Para os altamente qualificados, como os cientistas, o oposto é verdadeiro: quanto mais você sabe, maior a probabilidade de que veja o quão pouco você sabe. Esse é realmente um viés cognitivo de nosso tempo.

Talvez isso explique como um chef-celebridade australiano chamado Pete Evans possa não apenas promover os benefícios de uma "dieta paleolítica", como também sentir-se suficientemente informado para fazer pronunciamentos sobre flúor, filtro solar e vacinação.

Ele respondeu às críticas em uma entrevista na televisão dizendo: "Para que você precisa de qualificação? Para falar senso comum?". E acrescentou: "Por que você precisa estudar algo que está ultrapassado, que é promovido pela indústria, que é preconceituoso, que não está alcançando resultados?".

É difícil envolver-se quando os proponentes da saúde alternativa estão em um plano astral tão diferente que é um desafio até mesmo encontrar uma linguagem comum para conversar, especialmente quando eles promovem conceitos tão espúrios quanto a "doença pirrólica", da qual podem falar em grandes e falsos detalhes, atraindo o médico, nutricionista ou cientista bem informado para um redemoinho de casos pessoais e sabedoria antiga, salpicado de críticas aos grandes laboratórios.

É mais ou menos como um engenheiro aeroespacial querer discutir sobre espaçonaves alienígenas com o fundador de um museu de óvnis. Como pode um engenheiro aerodinâmico falar com autoridade sobre o assunto se ele ou ela não se deu ao trabalho de pesquisar sobre os acontecimentos do caso Roswell e nem sequer sabe que há vídeos sobre dissecação de alienígenas disponíveis na internet?

Contestar os gurus da saúde on-line é especialmente difícil quando eles oferecem o coquetel irresistível de linguagem médica misturada com uma estética muito mais agradável que a medicina, longe do mundo clínico de linóleo e antisséptico, um lugar melhor onde as condições dos pacientes são diagnosticadas com metáforas ("fadiga ad-renal") e tratadas com poesia (manjericão sagrado, caldo de osso, sal marinho do Himalaia).

Assim como aquela naturopata no Facebook se descrevia como "especialista" com um "consultório", os gurus da saúde alternativa usam a linguagem da medicina para parecer autênticos. Eles encomendam pesquisas, adotam protocolos. E, é claro, o que dizem é sempre meio certo, que é como funciona a pseudociência.

Mas não é o vocabulário da ciência que é importante –é a metodologia. Seria muito melhor que eles deixassem a linguagem e, em vez disso, adotassem a abordagem rigorosa das evidências, o que poderia significar, por exemplo, o site Goop decidir não vender por US$ 84 uma garrafa de água com quartzo ametista para "infundir a água com energia positiva".

Diante desse circo, nós, médicos, devemos nos ater firmemente às evidências. Devemos nos ater a nossas dúvidas, o conhecimento de nossa falibilidade como indivíduos e como profissão, sabendo que a humildade é uma força, e não uma fraqueza.

Mas também devemos, como profissão, nos envolver em debates públicos sobre saúde, inclusive nas redes sociais, juntamente com nossos colegas em campos de saúde aliados. Se não o fizermos, a discussão será dominada pelos apaixonadamente desinformados, que constroem confiança apenas para vender falsas curas. E devemos ouvir os pacientes, como nos foi ensinado, demonstrando cuidado e compreensão.

Devemos encarar o difícil desafio de inspirar e motivar com a verdade.

LISA PRYOR é médica e autora, mais recentemente, de "A Small Book About Drugs".

Tradução: LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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