Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Galápagos

Desde que Charles Darwin publicou a teoria da seleção das espécies, o arquipélago de Galápagos galgou ao posto de paraíso na Terra. Um lugar onde a natureza, livre do homem, agiu por si só, moldando seres que, por mar ou por ar, deram de parar ali.

Mas a história das pessoas que, atraídas pelo imaginário do cientista, fincaram os pés nas inóspitas ilhas é pouco conhecida.

E foi por acaso, zapeando a Apple TV, que selecionei o documentário "The Galapagos Affair: Satan Came to Eden". Ele narra o destino de um médico berlinense de nome Friedrich Ritter que, desiludido com a civilização, escolhe a desabitada ilha de Floreana para se isolar do mundo e concluir seus estudos filosóficos na companhia de uma mulher e de Nietzsche.

Convocado para lutar na linha de frente da Primeira Guerra Mundial, o jovem Ritter, como muitos de sua geração, acreditava que o conflito se resolveria em poucas semanas. Acabou encurralado nas trincheiras, testemunhando o martírio de milhares de companheiros. Conheceu a doença, o sofrimento e a morte, e retornou a Berlim convencido de que a guerra é uma força inseparável do homem. Perdeu a fé na humanidade.

Formou-se em medicina e, baseado na vontade, aliviou as dores causadas pela esclerose múltipla de uma paciente de nome Dora Strauch. Discípulo de Nietzsche, aconselhou a enferma a não permitir que a doença tomasse conta dela. Virou seu guru.

Ambos abandonaram os respectivos cônjuges para embarcar numa aventura que se provaria trágica: o isolamento absoluto na longínqua Galápagos.

Muitos europeus, como o pintor Paul Gauguin, já haviam partido em busca do Éden. Mas Gauguin optou pela vegetação luxuriante e as apetitosas nativas das ilhas Marquesas. Ritter elegeu o nada, uma rocha vulcânica esquecida e hostil, habitada por pássaros e répteis.

Ali, se dedicou à filosofia, enquanto Dora se ressentia da frieza do companheiro. Mulher, era mais difícil para ela dar conta do trabalho árduo e da falta de afeto. O primeiro relato da existência dos dois foi feito por um jornalista em visita ao arquipélago.

A notícia do par de Crusoés se espalhou pela Europa e acabou por atrair um outro casal de alemães, pais de um filho crescido e outro a caminho, ainda na barriga da mãe. Para desespero de Ritter, Heinz e Margret Wittmer se alojam nas cavernas localizadas no centro da ilha, antes habitadas por piratas. Como é comum acontecer, a animosidade cresceu entre os vizinhos.

A situação piora com a chegada de um terceiro elemento. As manchetes dos jornais levam Eloise von Wagner Bosquet, uma pretensa baronesa, a trocar Paris por Floreana na companhia de dois namorados que lhe serviam de escravos.

A baronesa, que costumava consultar "O Retrato de Dorian Gray" como se fosse o "I Ching", desembarca com planos de fundar um hotel; revela-se sedenta por terra, água, sexo, poder e afeita à servidão.

Em poucos meses, a experiência que deveria enlevá-los se transforma numa história de mesquinhez, ódio e horror. Uma seca mais prolongada termina por enlouquecer de vez os colonos e, assim como o que se daria em grande escala na Europa, tudo termina em assassinato e destruição.

O inferno são os outros.

Os registros da odisseia, fartamente documentados em película, contam com uma obra de ficção em que a baronesa, vestida de pirata e com os seios à mostra, traveste o escravo mais submisso com uma peruca loura de palha e finge atirar nos súditos com trejeitos de Glória Swanson.

A microssociedade de Floreana se dividia entre intelectuais castos, a nobreza amoral e uma família remediada, única a deixar descendentes. A filha dos Wittmer gere, hoje, uma pousada em Floreana e seu irmão, uma empresa de cruzeiros turísticos.

O documentário deixa um sentimento amargo e desesperançoso sobre a capacidade do ser humano de conviver com o próximo e de pensar no bem comum. A mesma que me acomete quando acompanho a mágoa e a violenta troca de acusações dos candidatos à presidência.

Seja o eleito quem for, os próximos quatro anos não prometem ser fáceis. Enfrentaremos a seca, a inflação e o pibinho. Temo que o Brasil sucumba à mesma competição irracional que destruiu as ilusões dos europeus da paradisíaca Galápagos.

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