Há dez anos, Jorge Mautner me presenteou com uma edição da "História da Filosofia", de Bertrand Russell.
O problema da filosofia é que um filósofo rebate o outro, de forma que a ilusão de ter compreendido o conteúdo de um capítulo se esvai no seguinte, condenando leigas (como eu) ao eterno retorno aos pré-socráticos.
Coleciono pilhas de Schopenhauer em 90 minutos, Heidegger para iniciantes, Husserl para imbecis. Devoro orelhas, notas, mas continuo na introdução.
Em meio à batalha eterna, Pedro Bial me apresentou a biografia de Bertrand Russell em quadrinhos, que completou, com uma década de atraso, o regalo de Mautner.
Idealizada por dois matemáticos de origem grega, Apostolos Doxiadis e Christos Papadimitriou, o último professor de ciência da computação na universidade de Berkeley, "Logicomix" (Martins Fontes, R$ 74, 352 págs.) narra a trajetória de Russell, da infância até o período que precede a entrada dos americanos na Segunda Guerra Mundial.
O livro fala de sua busca pelos fundamentos lógicos dos princípios da matemática e da tentativa de dominar a irracionalidade dos números e do próprio homem.
Muitos dos gênios que se dedicaram à lógica sofreram com uma instabilidade mental.
"Logicomix" é uma orelha pop e, ao mesmo tempo, abrangente.
Partindo de uma conferência de Russell na década de 40, em que a plateia se divide entre os que defendem o engajamento militar dos americanos contra a ameaça nazista e os que o rejeitam, o filósofo rememora a própria história.
A conclusão é que o pacifismo nem sempre leva à paz.
Não é o único paradoxo que aparece no livro. A geração de Russell redimensionou a geometria e a álgebra, encarando monstros como o infinito e os números imaginários.
O fantasma da inconsistência persegue aqueles que procuraram reduzir a matemática a um conjunto de axiomas claros.
Em 1902, o jovem Russell aponta uma falha no trabalho de Gottlob Frege –cuja contribuição para os avanços da lógica é comparável à de Aristóteles– que leva o gênio a afirmar que "um cientista dificilmente se depara com algo tão indesejável como o de ver os fundamentos ruírem exatamente quando o seu trabalho está terminado."
O que ficou conhecido como "Paradoxo de Russell" prova que todo conjunto que faz referência a si mesmo está condenado a um círculo vicioso insustentável.
Uma cidade ordena que todos os homens devem ser barbeados, ou por si mesmos, ou pelo barbeiro. Mas quem barbeia o barbeiro?
Soa banal, mas a questão traria consequências profundas para a teoria dos conjuntos e assombraria o próprio autor nos anos vindouros.
Já em 1931, com o teorema da incompletude, Kurt Gödel enterraria de vez a vontade determinista de resumir a matemática a uma sequência de normas palpáveis.
"Uma teoria, recursivamente enumerável e capaz de expressar verdades básicas da aritmética e alguns enunciados da teoria da prova, pode provar sua própria consistência se, e somente se, for inconsistente."
O Círculo de Viena, grupo de filósofos responsáveis pelo neopositivismo, é tema central de "Logicomix".
A reunião de notáveis terminaria de forma trágica, com a ascensão de Hitler e o assassinato de seu fundador, Moritz Schlick, por um aluno simpatizante do nazismo.
Impressiona a maneira como a insensatez de duas guerras mundiais marca a vida de pensadores que a devotaram à razão.
Assim como na teoria dos tipos, da qual Russell se valeria para escapar da sinuca de bico de seu paradoxo, "Logicomix" é um quebra-cabeça de um mundo dentro de outro e dentro de outro, onde os autores são também personagens.
Em conversas peripatéticas pela Atenas de hoje, Doxiadis, Papadimitriou e os desenhistas Alecos Papadatos e Annie Di Donna discutem o caminho da própria obra e o desdobramento dos conceitos da filosofia e da matemática no século 21.
O cérebro eletrônico de Turing é, hoje, realidade corriqueira na vida de qualquer imberbe –o que não impede a decapitação de infiéis, on-line, ao sul de Roma.
Não à toa, "Logicomix" conclui a saga de Russell com o embate entre Palas Atena e as Fúrias, no julgamento de Orestes.
Fecho a última página dos quadrinhos e, humilde, abro a primeira de "A História da Matemática", de Tatiana Roque, para, mais uma vez, começar do zero.
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