Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Treblinka

Crédito: Marta Mello/Editoria de Arte/Folhapress

Por razões profissionais, procurei Marcelo Freixo para conversar sobre o dia a dia das prisões no Rio de Janeiro. Terminado o café, o deputado me propôs que eu visitasse uma penitenciária.

Acabo de chegar do Evaristo de Moraes, presídio localizado na antiga estrebaria da família real, entre o zoológico da Quinta da Boa Vista e a comunidade da Mangueira. A localização já diz muito, mas me atenho aos números. Planejada para alojar 1.400 presos, a unidade abriga 2.500 detentos e conta com seis guardas que se alternam na ronda, em turnos de 24 horas.

Ali, se amontoam condenados por estupro, assassinato e tráfico. Também estão lá criminosos que traíram ou não têm ligação com as grandes facções e que correriam risco de vida caso fossem alocados em unidades dominadas pelo Comando Vermelho (CV), a Amigos dos Amigos (ADA) e o Terceiro Comando.

Essa é a escória do crime, me disse Castro, que dirige a unidade. Com longa experiência, o diretor explica que é mais difícil estabelecer uma relação de confiança e respeito com uma população carcerária sem hierarquia própria.

Cada cela tem um líder encarregado de fazer reivindicações e manter a ordem nos 200 metros quadrados sob sua responsabilidade. Sem a colaboração dos presos, seria impossível evitar o caos.

Guardas e detentos habitam essa praia imunda, onde o tsunami da desigualdade social dá de arrebentar. Assolada por décadas de ineficiência e corrupção do poder público, a legião de brasileiros sem escola, hospital, creche, transporte e saneamento básico acaba trancada ali, enquanto a sociedade transfere para a polícia o dever de barrar as vagas.

Durante a visita, os presos se alinharam diante das camas, em posição de sentido atrás das grades. Ao verem Freixo, se aproximaram formais, pedindo urgência nos processos, transferência para perto dos familiares e assistência médica.

Tuberculose, erisipela, hérnia, psoríase, sarna, aids: todas as misérias do mundo fazem a festa num presídio úmido e superlotado, com goteiras pingando sobre colchões de espuma sem forro. De short, eles exibiam as cicatrizes, feridas e sequelas de suas tragédias, enquanto tentavam aparentar calma e controle.

"Vamos entrar?" propôs Freixo. Atravessei o corredor de corpos enfileirados, e o que parecia uma massa uniforme de rostos pardos do lado de fora adquiriu individualidade. Didier, a trans que assassinou um cliente a facadas, me mostrou a cópia do passaporte que usou para rodar a Europa; um homem me recitou um poema; outro, ator, disse ter participado de uma oficina de teatro com minha mãe em São João do Meriti.

Percorri os 25 metros até o banheiro e voltei, cercada de uma imobilidade assustadora, resignação sem piedade, uma linha tênue entre a razão e o desespero.

Dos 2.500 presos, só 60 trabalham. O ócio, diz Castro, é um grande inimigo. Mas não há planos, dinheiro, não há estratégia que não a de trancafiar e esquecer. Vigiar e punir. A polícia é tão refém desse sistema quanto os que vivem à margem.

Thiago Castilho, um jovem inteligentíssimo, nos abordou. Abandonado aos nove meses pelo pai e pela mãe, cresceu mendigo, assaltou, matou e tirou seu primeiro documento quando foi condenado. Já tentou o suicídio e foi salvo pela biblioteca e a escola do Evaristo de Moraes, onde foi alfabetizado. Escreveu dois livros: o último acaba de ser publicado. Ele pedia permissão para ir ao lançamento.

Os racistas que atropelaram "commies" nas ruas da Virgínia acenderam o alerta para o retorno do nazifascismo. Mas bastaram 50 metros de caminhada naquela cela para experimentar a rotina de um barracão de Auschwitz, Treblinka, ou coisa que o valha.

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