Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.
Três esferas
Um ladrão de porco carregava sua presa sobre os ombros quando foi pego pela polícia:
- Aí, hein, ladrão de porco, roubando porco, né?
- Porco? Que porco?!
Vira a cabeça, olha o bicho e diz perplexo:
- Ai! Tira esse bicho daí!!
E sacode o bicho fora, com um repelão, como se fosse um inseto incômodo.
A anedota ilustra as três esferas políticas em que vivemos mergulhados: indivíduo-indivíduo; indivíduo-Estado; e, esta última pouco percebida, instâncias diferentes dentro de nossa cabeça. São políticas porque se referem à conversa entre poderes para ver qual prevalece. O ladrão-indivíduo prevalece sobre o porco; a polícia-Estado, sobre o ladrão. Mas ele tenta, através da negação, prevalecer sobre a polícia usando um truque velho: se for flagrado, negue até a morte.
Dentro de sua cabeça, dois poderes se enfrentam: genética e cultura. A genética motiva o ladrão a "se dar bem". A cultura lhe diz que isso é errado. O ladrão tenta enrolá-la: "Fica quieta, que é por uma boa causa". Não cola, ela continua a reclamar, ele finalmente usa do expediente perverso: "Ah, dane-se, vou fazer assim mesmo". Agora, só a cultura vinda do mundo externo (a Justiça) pode confrontá-lo.
Nossa espécie vive, desde o berço, um confronto de poderes brutal: a criança depende totalmente do mundo adulto para sobreviver, e usará de seus pequenos poderes para isso. Choro, manha, esperneio, sorriso, agrado, fofura, birra e o Estatuto da Criança e do Adolescente (apropriadamente chamado de ECA) são seus instrumentos. Vai aprender ainda o suborno e a mentira, a bajulação e a trapaça, e a usá-los para fora como instrumentos de poder. Mas para dentro também: vai descobrir que a autoenganação é a melhor forma de mentir.
Infelizmente, os valores éticos não serão tão valorizados assim em sua formação, pois lhe dizem que, ao usá-los, "não faz mais que sua obrigação".
De modo que todo adulto é um sobrevivente da própria infância, e traz dentro de si uma eterna guerra de poderes conflitantes entre interesses egoístas e a mais difícil compreensão de que os valores éticos, o importar-se com os outros, também lhe interessam, pois lhe dão o direito de exigir reciprocidade.
Vivemos um momento crítico desse embate: o cidadão pagador de impostos exige reciprocidade. Se o governo examina seus ganhos, ele quer examinar os ganhos do governo. Quer honestidade de seus dirigentes, boa gestão de SEU dinheiro, quer justiça e justeza: o que se aplica a ele também deve ser aplicado aos poderosos. Quer que esses se lembrem de que "todo o poder emana do povo": se o poder é mal usado, deve ser retirado de quem o exerce.
Mas... a ratazana de esgoto é mestre da sobrevivência. Quando percebe que o navio está afundando, faz como o comandante do Costa Concordia: pula fora do navio que comandava e diz que não tem nada a ver com isso. "Navio? Que navio? Tira esse bicho daí!"
A propósito, já reparou como a ratazana de esgoto cada vez mais se parece com uma ratazana de esgoto?
Bem dizem os franceses que aos 20 anos você tem a cara que Deus lhe deu. Depois, quanto mais envelhece, mais tem a cara que merece.
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