Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.
Crise de hegemonia
Eraldo Peres/Associated Press | ||
Renan Calheiros, presidente do Senado |
"Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem". Essa frase de Lênin ilustra bem a aceleração do tempo político no Brasil. O agravamento da situação econômica e o golpe institucional contra Dilma Rousseff abriram um período de instabilidade, que começa a traduzir-se em crise de hegemonia.
Os últimos dias trouxeram acontecimentos inimagináveis há tempos atrás. O ministro Marco Aurélio Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), defere o pedido de liminar afastando Renan Calheiros da presidência do Senado. Renan insurge-se, desacata a decisão e permanece no cargo. Comenta-se nos bastidores que foi aconselhado por outro ministro da corte, quiçá Gilmar Mendes, que veio a público sugerir o impeachment do colega Marco Aurélio. Crise entre os poderes e crise interna dos poderes.
Não menos expressivo, embora ausente dos noticiários, um dia antes um grupo de soldados da tropa de choque da Polícia Militar carioca abandonou o posto e juntou-se às milhares de pessoas que protestavam contra o pacote grego do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB). Pacote que atinge, inclusive, os policiais. Não foi a primeira vez, já havia ocorrido algo semelhante nas semanas anteriores.
Ao mesmo tempo fortalecem-se as especulações na elite econômica e na mídia de um "golpe dentro do golpe" para substituir Michel Temer por um nome mais limpinho e capaz. Temem, sobretudo, que os potenciais efeitos da delação da Odebrecht ou de uma eventual delação de Cunha tornem o governo incapaz de conduzir a agenda de austeridade e retirada de direitos sociais. Temer precisa mostrar serviço e rápido.
O que une esses três episódios é a crise de hegemonia. A briga aberta entre poderes, a deserção de tropas, ainda que residual, e o abandono pelos privilegiados de um governo que lhes pertence são sinais claros de que os de cima estão perdendo a capacidade de comandar.
A reação, porém, veio a galope. O senador Romero Jucá (PMDB-RR) já havia cantado a bola, meses antes, no gravador de Sérgio Machado : "tem que construir um pacto nacional, com o Supremo, com tudo". Falava da Lava Jato, mas o pacto em questão é mais amplo, de sobrevivência do regime e implantação da agenda defendida pelos de cima.
Nesta quarta (7) entrou em marcha abertamente o "pacto nacional" previsto por Jucá, envolvendo articulações pouco republicanas entre os três Poderes da República. Temer ajustou com o Supremo a salvação de Renan para manter a agenda, em especial a votação da PEC 55 na próxima semana. Em troca, Renan provavelmente não pautará, até o fim de sua gestão, o projeto de abuso de autoridade, que incomoda parte dos ministros da corte.
Para completar, o acordo teve o apoio da oposição que o governo gosta, representada pelo senador petista Jorge Viana, e o silêncio complacente do PT, com honrosas exceções, como a do senador Lindbergh Farias. É verdade que o Supremo sai chamuscado do processo. Na prática acovardou-se ante um senador que ignorou deliberadamente uma decisão judicial. O preço do pacto, neste caso, foi atirar Marco Aurélio aos cães.
Para tentar selar a recomposição hegemônica, Temer alterou ainda a draconiana proposta da reforma da Previdência, excluindo os militares. É um escárnio a olho nu, já que se há alguma "distorção" no sistema previdenciário é a dos militares. Sua contribuição é de 7,5% do salário bruto contra 11% dos civis, todos se aposentam pelo salário final e, mesmo representando apenas 30% dos servidores, geram um gasto maior que o dos civis. Mas Temer sabe que precisará deles, nestes tempos, para garantir a "ordem pública".
Conseguiram com isso diminuir a temperatura da crise, mas seria ilusão crer que esse pacto encerra o problema. Até porque, ele deixa de fora a maioria do povo brasileiro. Aliás, é um arranjo de salvação das instituições contra a maioria, alicerçado numa agenda de espoliação aos direitos sociais.
Os de baixo –excluídos do pacto– estarão cada vez mais na cena, levados às ruas pela falência em série dos Estados, o colapso nos serviços públicos e o aumento do desemprego. A crise de hegemonia do regime político brasileiro está apenas começando.
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