Manuel da Costa Pinto

Jornalista, mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Manuel da Costa Pinto

O gênio e o açougueiro

Na semana passada, morreu um gênio: Johan Cruyff, craque do Ajax, da seleção holandesa que revolucionou o futebol na Copa de 1974 e do Barcelona, clube que também levou à glória como técnico. No mesmo dia 24 de março, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia condenou a 40 anos de prisão o líder sérvio (nascido em Montenegro) Radovan Karadzic, responsável pelo massacre de Srebrenica e pelo cerco a Sarajevo, o que lhe valeu o singelo apelido de "Açougueiro da Bósnia".

O que os dois fatos têm em comum? É o que responde um livro-reportagem sensacional: "Como o Futebol Explica o Mundo", do norte-americano Franklin Foer. Não se trata de novo lançamento, mas de título que, publicado nos EUA em 2004, não cessa de mostrar atualidade.

Basta citar que, para escrever o capítulo sobre "A Sobrevivência dos Cartolas", Foer veio ao Brasil, onde encontrou no Vasco de Eurico Miranda o ninho da serpente que hoje expele miasmas na CBF, na Fifa e na Uefa.

Foer adora futebol, mas não entende patavinas de esquemas táticos. Sua perspicácia foi perceber que um judeu liberal nova-iorquino como ele só se tornou fanático torcedor do Barça por causa da globalização –e que, portanto, o futebol permite "um olhar inesperado sobre a globalização".

Coincidentemente, dois dos melhores capítulos resvalam na Holanda de Cruyff e nos genocidas da ex-Iugoslávia. No primeiro, sobre a questão judaica, depois de narrar a história do Hakoah, time vienense que encarnou o "judaísmo musculoso" –inversão sionista do estereótipo nazista do judeu doentio e curvado–, ele descreve outra inversão: o modo pelo qual times como o inglês Tottenham e o holandês Ajax foram associados aos judeus e passaram a responder às ofensas antissemitas dos adversários assimilando orgulhosamente símbolos como a estrela de Davi nas bandeiras e nos rostos pintados dos torcedores.

Aqui entra Cruyff, que comandou a equipe do Ajax e, casado com uma judia, costumava viajar a Israel portando um quipá bordado com o número 14 da camisa que vestia em campo. Foer vê no líder do "futebol total" jogado pelos holandeses a pura expressão da cultura hippie que tomou Amsterdã nos anos 1960 e 70 e fez da solidariedade aos judeus uma forma de purgar a tolerante Holanda da culpa pela cumplicidade com os nazistas.

Já a cumplicidade entre futebol e política nas guerras balcânicas é bem mais sinistra. Em "O Paraíso dos Gângsteres", Foer mergulha nos bastidores do Estrela Vermelha, time de Belgrado cujos "hooligans" formaram uma tropa de elite na guerra da Sérvia contra Croácia e Bósnia e cujo líder, Arkan, posou para uma foto pisando no cadáver de um muçulmano e beijando o presidente da República Sérvia da Bósnia –a saber, o famigerado magarefe Karadzic.

Com capítulos geniais sobre racismo, nacionalismos e conflitos religiosos (como o que divide torcedores católicos e protestantes na Escócia), o livro é pedagógico para vermelhos vetustos, que consideram o futebol alienante, e para coxinhas que envergam a camisa da CBF em protestos.


COMO O FUTEBOL EXPLICA O MUNDO - UM OLHAR INESPERADO SOBRE A GLOBALIZAÇÃO
QUANTO: R$ 44,90
AUTOR: FRANKLIN FOER
EDITORA: JORGE ZAHAR
TRADUTOR: CARLOS ALBERTO MEDEIROS
(2005, 224 págs.)

Conexões

VENENO REMÉDIO - O FUTEBOL E O BRASIL
Ensaio deslumbrante que lê o Brasil pela lente do futebol —ao mesmo tempo sintoma e sistema de gestão simbólica de nossa sociedade.
AUTOR: JOSÉ MIGUEL WISNIK
EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS
(2008, 448 págs. R$ 54,90)

A DANÇA DOS DEUSES
Estudo profundo do medievalista brasileiro sobre origens do jogo que ganhou dimensão mundial por seu paralelismo com os costumes, a política e até as estratégias bélicas.
AUTOR: HILÁRIO FRANCO JÚNIOR
EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS
(2007, 472 págs. R$ 72,90)

LIVRO

OS BUDDENBROOK
Primeiro romance do alemão Thomas Mann (1875-1955), ganhador do Nobel de literatura em 1929, "Os Buddenbrook" (1901) é seu livro mais autobiográfico: narra o declínio de uma família de negociantes abastados de sua cidade natal, Lübeck, em moldes naturalistas, mas já com a ambiguidade moral e a ironia que marcariam suas obras seguintes.
AUTOR: THOMAS MANN
EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS
TRADUÇÃO: HERBERT CARO
(712 págs., R$ 79,90)

Crédito: Reprodução A escritora francesa Simone de Beauvoir em foto para a revista "Time", em 1956. [FSP-Ilustrada-07.03.97]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***
A escritora francesa Simone de Beauvoir em foto para a revista "Time", em 1956

FILME

SIMONE DE BEAUVOIR E O FEMINISMO

  • Autor JEAN-LOUIS SERVAN-SCHREIBER, DOMINIQUE GROS E WILFRID LEMOINE

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.