Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.
O encontro de Ro e Vla na ocupação da Funarte
(Sala soturna de uma ocupação na Funarte. Paredes grafitadas, colchonetes encardidos, pilhas de cadeiras. Sentada no chão, Rosa tecla o celular quando chega Vladimir. Mal se entende o que falam.)
Ro: E aí, cara, fazendo o que aqui? Perdeu-se na neblina da guerra social? Veio visitar o cafofo da juventude dourada?
Vla: Nem vem. Vim ver como está a luta contra o golpe.
Ro: Sei, sei. Até ontem, você e o PT negavam verbas, diziam que éramos mimados e desocupados. Agora que a festa acabou, vem ver se recruta alguma ingênua para o seu grupelho patético. Lascou-se, mané. Você é casca e eu caroço.
Vla: Você sabe muito bem que nunca tivemos ilusões. Se apoiamos essa droga de governo foi para estar junto com as massas, viver com elas suas ilusões reformistas. E o que importa é que 30 milhões de pessoas melhoraram de vida.
Ro: Juro que não parecia. Vocês aparelharam o governo para cacifar o seu partidinho, isso sim. E pode me dizer onde estavam esses 30 milhões quando Dona Dilma desmoronou?
Vla: Nós ajudávamos os miseráveis, os feios. Enquanto isso, vocês espichavam a juventude. Fingiam de artistas e encenavam peças cada vez mais extremistas, mas com verbas do governo que criticavam. Eu a sério e você nem aí.
(Uma funcionária atravessa a cena, varrendo o chão de má-vontade.)
Ro: Esqueceu que o único ato radical desses anos, a insurgência, foi organizado por nós, gente nova, naquele junho?
Vla: Como esquecer? Na maior irresponsabilidade, começaram uma barulheira utópica e, na hora H, brincaram de black blocs. Entregaram o apocalipse à contrarrevolução. Você o pavio e o povo a pólvora.
Ro: E a esquerda revolucionária, onde andava? Pode deixar que respondo: ao lado dos tucanos, aplaudindo a PM que baixava o pau no povo rebelde. Você a raquete e eu a bola.
Vla: Nada disso, eu o pingue e você o pongue. Tivemos que nos adaptar, acumular forças para avançar. Não se inicia uma revolução sem ter quem a dirija. Eu princípio e você prazer.
(Uma dupla de arapongas da Abin, fantasiados de artistas, atravessa a cena sem prestar atenção no que dizem. Conversam: "o general Etchegoyen não come mel; come abelha". "Que bigode maneiro!".)
Ro: Você mente e eu me espreguiço. Esse papo de construir partido de elite nunca deu certo. Revolução se faz no dia a dia, com o que há à mão: os desamparados, os mestiços, as mulheres, os jovens, o lúmpen. Você é o efeito e eu a causa.
Vla: O que não existe é essa história de espontaneidade revolucionária. Só se começa a mudar as coisas ao tomar o poder de Estado. É preciso por a mão na merda. Você é o risco e eu o fósforo. Você é brisa e eu dilúvio.
Ro: Você não aprende, cara? Os teus amigos se venderam antes e depois de chegar ao poder –por viagens e vinhos, para andar em carrões com chofer, para comer secretárias– e você acreditando na grande aurora. O que vale é o aqui e o agora. Existe no meio do tempo a possibilidade de uma ilha.
Vla: Pronto! Só falta você, logo você, dizer que o movimento é tudo e o fim, nada. É melhor recomeçarmos.
Ro: Já que não há liberdade sem luta, vamos lá, rumo ao futuro de uma ilusão.
Vla: Tentaremos de novo até o fim da dor. Você é o canto, minha sereia. Você é joia e eu joio.
Ro: Não tem jeito, eu também não aprendo. Somos sempre e nunca.
Vla: Você é o sonho.
Ro: E eu com sono.
(Assim falavam eles no galpão do que sobrou. Só a noite entendia suas palavras.)
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