Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.
O Brasil outrora engraçado é agora movido a azedume
Um subproduto da infindável crise nacional é o mau humor. Ele ficou unânime. O Brasil outrora engraçado é agora movido a azedume. A faísca espirituosa, que iluminava falácias e liberava o riso, deu lugar ao rancor. A ironia política entrou em pane.
O conceito de ironia foi desenvolvido por Sócrates, que dizia o contrário daquilo que achava verdadeiro. Quando lhe perguntaram quem era o homem mais sábio da Grécia, respondeu: "Só sei que nada sei". Irônico, o sabe-tudo se disse um ignorante total.
E Temer? Quando nomeou Angorá ministro, indicou um plagiador para o Supremo, se esfalfou para que Índio presidisse o Senado, mas continuou a jurar que preza a Lava Jato, ele foi irônico, socrático?
Se o presidente pretendeu proteger a sua grei, para que ela prospere em paz, mas afirmou o contrário, não foi irônico nem sábio. Foi, isso sim, cínico.
A ironia causa problemas. Sócrates a usava para fazer perguntas e chegar à verdade. Com as suas indagações, o filósofo sabotava as certezas do interlocutor, que ficava espiritualmente livre para aceitar o inesperado, o verdadeiro.
Num mundo racional, os atenienses deveriam agradecer as ironias do pensador, que os conduzia à verdade. No mundo real, eles ficavam uma arara porque Sócrates os ridicularizava.
Para piorar, o filósofo tinha os olhos arregalados de um boi. Vestia togas desalinhadas. Chegava atrasado às festas nas quais era o convidado principal. Aristófanes espalhou que Sócrates era um chato.
Kierkegaard observou que, transformada em método, a ironia alcança tudo e todos. Sem limites, ela faz com que a própria realidade oscile. A existência se torna estranha ao sujeito irônico, e este se torna estranho à existência. Realidade e linguagem entram em descompasso.
Por exemplo: muitos atenienses passaram a achar que, com o seu só-sei-que-nada-sei, Sócrates simulava humildade; dava uma de sábio, mas sofismava. Sem se dar conta da realidade (a irritação crescente), o pensador insistiu na sua retórica (irônica). Acabou condenado por corrupção e bebeu cicuta.
No Brasil, há descompasso semelhante entre linguagem e realidade. Desde a Constituição de 1988, o sistema de representação política foi paulatinamente comprado pelo alto empresariado. Congresso e Planalto viraram agências da burguesia.
Mas a linguagem da política continuou a mesma. Parlamentares, ministros e governadores faziam o que a classe dominante determinava, mas ao som de discursos contra a corrupção.
Achando que a direção do PT estava no bolso, a Odebrecht e assemelhados não cuidaram de mudar a linguagem maior, a da Constituição. Até porque não tinham como controlar uma Constituinte inteira. Foi nessa brecha que a Lava Jato germinou.
Essa conjuntura mudou nos últimos dias. Situação e oposição pararam de dizer que a corrupção é um mal. Querem se safar e seguir em frente. Se não houver protestos equivalentes aos que levaram Dilma ao patíbulo, o Brasil oficial trinfará. Alguns cleptocratas serão sacrificados, mas o mando burguês será preservado.
O núcleo da linguagem será a eleição de 2018, apresentada como miragem para mudanças reais: agora vai! Só a ironia não terá lugar na nova retórica. Segundo Kierkegaard, a única continuidade possível para a ironia é o tédio:
"O tédio, essa eternidade sem conteúdo, esta felicidade sem gozo, esta profundidade superficial, esta saciedade faminta".
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