É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.
Guerra sem fim?
Críticos literários provavelmente vão querer me estapear pelo que direi a seguir, mas nada me tira da cabeça que o livro que melhor entendeu os demônios do século 20 é um romance infanto-juvenil sobre o rei Arthur.
Há muitas cenas memoráveis nas cinco partes de "O Único e Eterno Rei", escrito pelo britânico T.H. White (1906-1964), mas talvez a mais tocante seja o momento em que o velho Arthur, pouco antes de sua última batalha, relembra com desespero suas tentativas fracassadas de extirpar a guerra e a violência de seu reino. Era como tentar tapar com o dedo os buracos que teimavam em aparecer numa represa imensa: a água sempre escapava por algum outro furo, escreve White. No fim das contas, o fracasso do monarca mostrara que não somos o Homo sapiens ("sábio", em latim), mas o Homo ferox ("feroz"), a única espécie do reino animal capaz de exterminar em massa seus semelhantes.
Foi em White que pensei ao escrever recentemente nesta Folha sobre a descoberta de um massacre ocorrido há 10 mil anos, no Quênia: 12 homens e mulheres mortos a flechadas e golpes de tacape, no que parece ser a mais antiga guerra cujos vestígios chegaram até nós. Nosso Éden africano, em outras palavras, foi um matadouro. Será que o vaticínio do romancista sobre sua própria espécie estava correto?
Bem, depende. Dos anos 1950 (quando a obra magna de White foi concluída) para cá, veio à tona um fato que, se não absolve propriamente o homem, ao menos faz com que ele não pareça uma aberração tão grande assim. Ocorre que a guerra é muito mais comum na natureza do que o escritor imaginava.
Chimpanzés, nossos primos de primeiro grau na Árvore da Vida, praticam o que só pode ser definido como guerras de conquista – matam membros de grupos rivais para tomar seu território. Coisas muito parecidas acontecem entre carnívoros sociais, como lobos, leões e hienas. E mesmo formigas fazem expedições de guerra escravista, levando larvas cativas para seu formigueiro – com o atenuante de que isso costuma acontecer entre insetos de espécies diferentes.
Quando a gente observa toda a saga da espécie humana, da mais remota pré-história ao século 21, fica claro que as guerras e a "violência interpessoal letal" (como dizem os antropólogos) de fato sempre existiram - mas há motivos para uma dose moderada de otimismo.
O mais importante deles é que, mesmo levando em conta a violência urbana, o terrorismo e o tráfico de drogas deste ano de 2016, os seres humanos de hoje levam uma vida muito mais pacata e segura, em média, do que a de caçadores-coletores do passado remoto ou recente. Nessas tribos sem aparato estatal (ou seja, sem presidente da República, polícia ou Exército regular), a proporção de mortes violentas é dezenas ou até centenas de vezes superior à atual – e parecida com a proporção que a gente vê em outras espécies de mamíferos sociais, inteligentes e altamente territoriais, aliás.
Tudo indica que o primeiro passo para quebrar esse ciclo de violência é a consolidação do Estado como árbitro de disputas – sem uma autoridade central, a tendência natural é resolver diferenças na base da pancada. Mesmo com as duas guerras mundiais do século 20, a tendência de redução da violência já dura faz séculos.
Talvez nunca seja possível estancar totalmente a enchente da guerra. O futuro é um território vasto e perigoso, mas algo me diz que os esforços heroicos do menino que tirou a espada da pedra e virou rei não foram tão fúteis quanto ele imaginava.
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