renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
A ordem das coisas
Na quarta-feira, os jornais noticiaram a morte de dois sem-terra. Um dos casos ocorreu no interior do Ceará, onde pistoleiros atacaram um grupo de acampados. O outro, em Recife, durante confronto entre manifestantes e policiais militares. Os dois se deram no primeiro dia do Levante do Campo, protesto organizado pelo MST em 19 Estados.
Na quinta-feira, o segundo caso voltou à capa da Folha com o seguinte título: "Família de sem- terra assassinado culpa MST". Na mesma linha, o enunciado interno dizia que os parentes acusam o movimento de ter "manipulado" José Marlúcio da Silva.
A afirmação se baseou em frase ("Fizeram a cabeça dele") de uma irmã do lavrador, que ingressou no MST apenas quatro dias antes de morrer. Apoiou-se também no veto da família a que o velório fosse realizado no acampamento dos sem-terra.
Três parágrafos adiante da declaração da irmã, a mulher de Silva contava história diferente. "Ali (entre os militantes) não era o ambiente dele", dizia. Negava, no entanto, que o marido tivesse aderido ao movimento sob coação. Em seu entender, Silva foi para o acampamento por achar "que não poderia perder a oportunidade, porque diziam que a terra era certa".
A versão da mulher não apareceu na primeira página. Tampouco foi destacada no sobretítulo (aquela linha de texto que complementa as manchetes) interno.
Dos principais diários, apenas a Folha considerou a teoria da manipulação assunto de capa. "O Globo" abriu seu relato da mesma maneira, mas deixou-o no miolo do jornal.
"O Estado" relatou a controvérsia familiar em sua reportagem, mas depois de informar em que pé estavam as investigações sobre a autoria do disparo (como de hábito nesses episódios, estavam no estágio em que a PM sustenta não ter atirado em ninguém).
Não se trata de descartar o protesto dos parentes, sem dúvida merecedor de registro. Os problemas são dois: o lugar que foi dado a essa questão na hierarquia da notícia e o desprezo pelo elemento contraditório.
Como observou um dos leitores que me procuraram para criticar a conduta da Folha, discutir os métodos de recrutamento do MST não é mais importante, neste caso, do que estabelecer quem matou o sem-terra.
Além de inverter a ordem das coisas, o jornal deixou escondida a versão que esfriava seu título. Por algum motivo, decidiu-se que a palavra da irmã vale mais que a da mulher do morto.
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