É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.
O beijo e a palavra beijo
Luiza Pannunzio/Folhapress |
Em certo momento da série "Justiça Sem Limites", Alan Shore desabafa com Denny Crane que receia ter perdido a namorada: minutos antes, foi encontrá-la a rir com outro homem. Crane pergunta: "Tens a certeza de que estavam a rir? Não estariam apenas a beijar-se, ou algo assim?".
Talvez haja quem pense que Denny está a ser irônico. Eu não. Concordo com a interpretação literal das palavras dele: o riso é capaz de gerar entre duas pessoas um tipo de intimidade que é superior àquela que um beijo cria.
Pessoalmente, faço com palavras tudo o que é importante. Por exemplo, se quero que uma pessoa saiba que gosto dela, recorro mais depressa a palavras do que, digamos, a beijos. Quase toda a gente faz o inverso, uma vez que as palavras têm muito pior reputação do que os beijos –o que é, aliás, difícil de compreender.
O Deus da Bíblia criou o mundo com palavras. E o seu filho, que veio à Terra para proferir palavras admiráveis, foi traído por um beijo. Isso deveria ser o suficiente para nos elucidar quanto à bondade das palavras e à maldade dos beijos.
Ainda assim, em geral as palavras merecem menos consideração do que um beijo. Ou do que uma imagem, por exemplo. Para mim, é o contrário: uma palavra vale mais do que mil imagens. Gosto mais de ouvir uma história a ser contada do que de ver uma história a desenrolar-se. Desfruto mais de descrever o que fiz do que de o ter feito. Acho o relato da vida mais interessante do que a própria vida. Gosto mais da palavra beijo do que de beijos. Enfim, quase sempre.
Eis a minha tese: o sucesso da conversa sobre sexo, que anima qualquer festa, deve-se ao fato de a linguagem ser mais rica do que as coisas referidas. Temos mais do que uma palavra para designar apenas uma coisa. As coisas são o que são.
Mas as palavras transformam-nas. Esse é o segredo da publicidade. Nos concursos, as pessoas nunca ganham um automóvel. É sempre "este magnífico automóvel". Sucede que, quando o levam para casa, as pessoas passam a usar apenas o automóvel. Nunca dizem: "Bom, está na hora de ir para o trabalho. Vou buscar o magnífico automóvel".
Do mesmo modo, a descrição do sexo consegue ser sempre mais compensadora do que o próprio sexo. No âmbito de uma experiência de caráter estritamente linguístico, gostaria de desafiar, por exemplo, Scarlett Johansson a demonstrar-me o contrário.
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