É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.
Ter ou não ter
Chega sempre aquele momento na vida de um casal em que eles (calma, leitor. Não é uma falha de concordância. Eu sei que "casal" é do singular, e "eles" é plural, mas acontece que optei por usar aqui uma silepse, a figura em que a concordância não tem em conta a palavra, mas aquilo que ela designa. Um casal tem dois elementos, e é a eles que se refere aquele "eles". O leitor fez mal em ter interrompido. Não deve ter muitos colunistas que lhe ofereçam uma silepse logo na primeira frase, e mesmo assim protesta).
Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress |
Como eu dizia, chega sempre aquele momento na vida de um casal em que eles optam entre viver felizes para sempre ou ter filhos. A maior parte dos casais escolhe a segunda hipótese. Foi o que eu fiz.
Na verdade, não há nenhuma boa razão para ter filhos. Não me interpretem mal: eu adoro as minhas filhas. Na maior parte do tempo. Mas não houve nenhum motivo nobre por trás da decisão de as ter. Tive-as, simplesmente. Quase toda a gente tenta apresentar um bom argumento a favor de ter filhos. Quase toda a gente falha. Um dos mais comuns é: os filhos dão muita alegria.
É verdade, mas não constitui uma boa razão para tê-los. Para dar alegria já existem cachorros e peixinhos de aquário. Esse nicho de mercado está bem preenchido. Quem deseja alegrar-se também pode contratar um artista de variedades. É mais justo e decente do que gerar um ser para nosso divertimento.
Outro argumento é: para dar sentido à vida. Também não serve. Quando admitimos que são os filhos que dão sentido à vida, estamos a dizer que a vida deles não tem sentido, pelo menos até eles terem filhos. Ou seja, geramos uma vida sem sentido para dar sentido à nossa. Não parece correto. Até resolver esse problema filosófico, convém continuar a investir em métodos anticoncepcionais.
No meu caso, talvez a irresponsabilidade tenha sido, por uma vez, o caminho acertado. Não sei por que tive filhas. E assim é que está certo. Elas não devem ter uma razão de ser, uma utilidade. Olhar para elas, vê-las crescer, é a única coisa a que eu tenho direito. Por isso, todas as noites, quando vou dar um beijo nas minhas filhas, já elas dormem, segredo-lhes ao ouvido: "Um asilo melhor para o papá". Para que, quando eu for velho, elas escolham para mim uma casa de repouso superior à da minha mulher. Ver essa ideia a germinar no subconsciente delas fará a minha felicidade.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade