É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
Escreve às quintas.
Lição de Machado a purista: abuso de estrangeirismo se combate com humor
Dominio Publico | ||
Nunca comi 'croquettes' (...) só por causa do nome francês, escreveu Machado de Assis |
Aportuguesadas ou não, empregadas fora de contexto ou não, mão na roda ou não, exibicionistas ou não, as palavras estrangeiras formam uma nuvem em torno da nossa língua. Realizou?
Talvez a maioria viva bem com isso, acreditando que, para usar o modismo deste outono, "língua é sobre dar o recado" e o resto é frescura. Também não falta quem se angustie.
Será que existe um limite razoável para as importações? Se a língua está viva –e se mexendo!–, só nos resta relaxar enquanto as fábricas viram plantas?
Relaxar costuma ser bom conselho. Se vingar a acepção que o inglês "plant" fez crescer no vocábulo "planta" como um galho enxertado –bem, perdeu, playboy. O conjunto dos falantes é soberano. Mas essa história não acaba aqui.
Na distinção famosa de Ferdinand de Saussure, pai da linguística, uma coisa é língua e outra é fala. A primeira, social, precede e ultrapassa cada um de nós. A fala, sim, é a casa do falante, onde ele é rei.
A fala é o recorte pessoal feito numa tela imensa de bordas indistintas. É um parque de diversões e também o domínio das nossas decisões éticas, estéticas e afetivas.
Se a "planta" industrial lhe cai mal, por parecer uma tradução preguiçosa que denota servilismo cultural e penúria educacional, não admita que ninguém lhe negue esse direito.
Sim, a comédia involuntária produzida pelos puristas de cem anos atrás ensina que argumentos do gênero costumam perder. Isso não desautoriza o olhar crítico, a ponderação, o humor –pelo contrário! O embate entre Machado de Assis e Castro Lopes é a melhor ilustração da diferença entre o crítico e o purista.
Machado e quem? Hoje ninguém fala dele, mas Antônio de Castro Lopes (1827-1901) foi o príncipe dos puristas. Médico e latinista, ganhou fama ao propor a substituição de termos franceses por neologismos cultos que ele mesmo criava.
Uma vez que "chauffeur" (sem aportuguesamento na época) era francês e "motorista" dormia no limbo dos neologismos futuros, o autor do livro "Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis" lançou a candidatura de "cinesíforo".
"Reclame" (anúncio publicitário) devia dar lugar a "preconício", "pince-nez" a "nasóculos", "abat-jour" a "lucivelo", "avalanche" a "runimol" etc. Nada disso pegou.
Bom, quase nada. Só faremos justiça a Castro Lopes se lhe dermos crédito pela criação da palavra "cardápio" em resposta a "menu". Trata-se de um êxito impressionante. Seu "convescote", substituto de "pique-nique", é menos usado, mas também está vivo. Nem tudo é fiasco no reino do purismo.
Machado de Assis dedicou algumas crônicas à cruzada quixotesca de Castro Lopes. Tratava o homem com ironia, chamando-o de "nossa Academia Francesa". A rigidez do latinista contrasta comicamente com a postura nuançada e cheia de humor do maior escritor brasileiro.
"Nunca comi 'croquettes', por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei 'filet de boeuf', é certo, mas com restrição mental de estar comendo 'lombo de vaca'", escreveu Machado em crônica de 7 de março de 1889.
Ambos revelam estranhamento diante das palavras estrangeiras. Um as rejeita em bloco, o outro ri delas e de sua própria confusão. Entre o purista e o escritor, meu lado está escolhido desde sempre.
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