Intolerância chega a universidades com bomba, ameaça e briga judicial

ANGELA PINHO
DE SÃO PAULO

Em tempos de polarização política, universidades brasileiras registraram em 2017 casos que vão de confrontos nos campi a brigas na Justiça, ameaça de morte e até utilização de explosivo.

Embora tenham diferentes contextos, boa parte dos incidentes se desenvolve em torno de duas questões: de um lado, estudos e eventos sobre gênero e, de outro, a exibição do documentário "O Jardim das Aflições", sobre a obra do filósofo Olavo de Carvalho.

Alçado a símbolo do fortalecimento de grupos estudantis de direita, o filme vem sendo exibido em auditórios do país em uma série de eventos batizada por organizadores de "Batalha das Universidades".

Em pelo menos duas exibições, houve tumulto. Em outubro, a UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) foi palco de pancadaria entre espectadores do filme e militantes de esquerda que organizaram um evento paralelo.

Crédito: Reprodução/Facebook Homem é ferido na UFPE em confronto motivado por documentário sobre Olavo de Carvalho
Homem é ferido na UFPE em confronto motivado por documentário sobre Olavo de Carvalho

Na UFBA (federal da Bahia), também houve bate-boca e empurrões, mas a escalada de violência atingiu o auge no final de novembro.

No dia 22 daquele mês, professores e alunos de esquerda organizaram um ato em contraposição ao filme no campus Ondina, em Salvador. Participantes desse ato relataram à Folha que uma bomba foi arremessada contra eles. O artefato caiu no jardim.

Procurada, a universidade afirma que "o evento foi realizado e transcorreu sem incidentes, até as 18h50. Após o seu término, houve o lançamento de uma bomba tipo junina". A instituição afirma que "a explosão não resultou em danos, por menores que fossem à comunidade UFBA, não causou qualquer prejuízo a atividades ou ao espaço físico da universidade".

Além da ocorrência, a universidade registra ainda outros casos que evidenciam intimidação a professores em meio ao acirramento das tensões políticas.

Recentemente, uma pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher foi alvo de ameaças, inclusive de morte, após falar sobre igualdade de gênero.

Sua identidade, assim como as circunstâncias do episódio, são mantidas sob sigilo a seu pedido, por motivo de segurança. A Polícia Federal investiga o caso.

Na mesma universidade, a defesa de uma dissertação de mestrado sobre sexualidade e gênero na educação básica foi acompanhada por seguranças após relatos de que alunos do curso de serviço social tentariam tumultuar a apresentação –o que acabou não ocorrendo após docentes procurarem os estudantes para conversar.

"Ter que solicitar segurança é um sintoma muito grave do que está acontecendo no Brasil. É algo que me deixa de cabelo em pé", diz o professor Leandro Colling, coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade.

Segundo ele, porém, situações como essas não parecem inibir estudos sobre gênero.

Crédito: Pedro Saad/Folhapress A pesquisadora e professora Marlene de Fáveri foi processada por aluna após desistir de orientá-la no mestrado
A professora Marlene de Fáveri foi processada por aluna após desistir de orientá-la no mestrado

NA JUSTIÇA

O assunto, porém, está no centro de diversas tensões internas nas universidades. Na Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), a professora e pesquisadora Marlene de Fáveri foi acionada na Justiça por uma aluna antifeminista após desistir de orientá-la no mestrado.

Fáveri é coordenadora do Laboratório de Relações de Gênero e Família da Udesc.

Cristã e participante de eventos do movimento Escola Sem Partido, sua ex-orientanda Ana Campagnolo, professora de história na educação básica, pede indenização de R$ 17.600 em danos morais sob a alegação de que sofreu discriminação por causa de sua crença religiosa.

Autora de postagens contra o feminismo e a favor de nomes como Jair Bolsonaro (PSC), ela entrou no mestrado em 2013 com projeto intitulado "Virgindade e Família: a mudança de costumes e o papel da mulher percebido através da análise de discursos em Inquéritos Policiais da Comarca de Chapecó".

Em vídeo de palestra disponível na internet, diz que, mesmo sem concordar com o feminismo, fez um projeto sob medida ao que achava ser a expectativa dos professores.

"Deletei todas as contas em redes sociais, evitei qualquer contato com o mundo, me excluí da internet e fiz um projeto completamente marxista e fiquei esperando o resultado. Depois que eu passei, ufa, daí, instalei tudo de novo e vamos ver no que é que dá, né?"

Publicações de Ana em redes sociais foram motivo de críticas e discussões em sala de aula. No processo, ela anexa gravações dos debates, assim como e-mails enviados por Marlene. Em um deles, a professora diz estar recebendo links com posicionamentos antifeministas de Ana.

"Você tem todo o direito de ser conservadora, antifeminista, etc, mas não combina com o teu tema de pesquisa, nem com as práticas que temos acerca das conquistas femininas", diz a professora, pedindo que ela analise melhor as coisas antes de compartilhar. "Respeito tuas ideias, porém, vamos dialogar sobre elas."

Posteriormente, a professora deixou a orientação da aluna. Ana Caroline mudou de tema e de orientador, foi reprovada e, em 2016, entrou com a ação contra a professora.

Não há ainda decisão final sobre o processo. A ação, porém, já teve efeito, segundo a professora. Ela relata um forte abalo emocional decorrente da ação e diz que, desde o início do caso, tornaram-se recorrentes os questionamentos sobre seu trabalho onde quer que ela esteja.

A docente nega ter tomado qualquer atitude discriminatória em virtude das crenças da aluna. "Todos têm direito à voz e à fala, mas não se pode abrir mão de argumentos", diz. Para sua advogada, Daniela Félix, está em julgamento no país a liberdade de cátedra.

TENSÃO

Em meio às tensões internas, universidades foram também alvo de uma série de operações policiais em 2017, o que despertou críticas de reitores de que as instituições estariam sob ataque político.

Sob a justificativa de investigar irregularidades como desvio de recursos, foram aos menos seis ações desde o final de 2016, em quatro federais –a de Santa Catarina (UFSC), a do Rio Grande do Sul (UFRGS), a do Paraná (UFPR) e, mais recentemente, a de Minas Gerais (UFMG).

A ocorrida na instituição catarinense culminou com o afastamento do reitor, Luiz Carlos Cancellier, que posteriormente cometeu suicídio ao se atirar em um vão de um shopping de Florianópolis.

Em nota após a condução coercitiva do reitor da UFMG e de outros professores para investigação sobre desvio de recursos, a Andifes (associação dos dirigentes das federais) afirmou que as ações tinham motivações ideológicas. "Apenas o desprezo pela lei e a intenção política de calar as universidades, lócus do pensamento crítico e da promoção da cidadania, podem justificar a opção de conduzir coercitivamente, no lugar de simplesmente intimar para prestar as informações eventualmente necessárias", diz o texto.

'CASA FECHADA'

O acirramento do embate político ocorre também em meio ao fortalecimento de grupos de direita organizados nas universidades públicas.

Antes minoria em centros acadêmicos, eles disputam eleições para representações estudantis e aglutinam apoiadores em redes sociais. Defendem bandeiras como policiamento no campus e combatem greves e o que classificam de doutrinação ideológica nas salas de aula.

Diretor do filme sobre Olavo de Carvalho, o cineasta Josias Teófilo diz que os incidentes relacionados às exibições se devem a essa mudança e ao fato de a obra quebrar uma tradição cultural das universidades de não falar sobre a obra de pensadores conservadores.

"[A universidade] é como uma casa fechada há 20 anos. Quando abre, tem muita coisa podre. É preciso abrir as janelas", afirma.

Para ele, o pensamento de direita hoje está, com poucas exceções, fora das instituições de ensino.

Autora do processo contra a professora Marlene de Fáveri, Ana Campagnolo afirma que há um "cabresto ideológico" nas faculdades. "A grande maioria dos jovens acredita que precisa de um diploma e aceita qualquer ultraje para obtê-lo, vendendo sua consciência e boicotando sua própria liberdade de crença."

Sobre declaração anterior, de que fez um projeto contrário às suas ideias, ela disse que adequou sua pesquisa "às rédeas ideológicas e ao tema exigido pela linha de pesquisa", mas manteve intocadas suas convicções pessoais.

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