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Fortaleza no pé: Garoto dribla a morte e joga Copa das crianças de rua

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Quando pergunto a ele sobre o passado e o futuro, Vinicius Marcos Pinheiro Ferreira diz: "Não conto o tempo". Por que não? "Não conto. Eu não conto a alegria e não conto a tristeza. Tenho o tempo que estou na vida." É um outro conceito, o do Brasil dos meninos sem tempo. Aos 15 anos, ele arranca cada dia do impossível, e o dia é tudo o que tem. Talvez inteiro, talvez não. Onde ele vive, no Canindezinho, favela do Bom Jardim, em Fortaleza, a bala interrompe a existência num segundo. A seleção brasileira joga hoje na cidade de Vinicius para fazer gols e vencer. Vinicius também é da seleção brasileira, mas a dos garotos que jogaram em abril a Copa do Mundo das Crianças de Rua. Vinicius faz gol de placa todo dia. Seu golaço é acordar vivo.

É um menino pequeno. É um gigante. "Não sei de futuro, só sei de sonho." O sonho expõe a vida inteira. "Quero ter uma família. E três filhos: Rodrigo, Denise e Vicente." Poderia ser uma frase banal. É um mapa do Brasil inteiro. Arreganhado, duro como a pedra em que ele arrebentou o pé esquerdo fazendo embaixadinha.

Rodrigo, o nome do primogênito, é o mesmo do capitão da seleção brasileira de meninos de rua. Morreu em fevereiro, antes do campeonato. De tiro. Aos 14 anos, no dia do seu aniversário. Vinicius, um de seus melhores amigos, assim descreve a sua morte: "Ele tava fazendo uns roubos na favela [porque passava fome]. Um cara apontou a arma primeiro para o irmão dele. Só fez tec, tec. Era catolé". Pergunto o que é "catolé". Ele explica: "Não sai a bala".

Nesse momento, interrompe a narrativa. "Você entende só um pouco de português, né?". Porque eu não alcanço a riqueza da sua língua, peço tradução. Porque o Brasil dos hotéis em que se hospedam a seleção e também a imprensa é estranho ao dele, no avesso de Fortaleza. Mas não só. "Você é muito branca, achei que era gringa."

Vinicius retoma o fio, que agora só será interrompido à bala. "O cara que matou o Rodrigo disse para o irmão dele: 'Ei, Mano, eu não quero tu. Só quero esse neguinho aqui'. E deu tiro na perna, e deu tiro na cabeça." No total foram cinco. Vinicius estava com o resto do time, esperando para treinar, quando chegou a notícia. Em vez de ir para o campo jogar, foram ao velório do capitão.

Esse é o primeiro nome. Não o do filho que terá, porque ele não conjuga futuro, mas o do sonho, que é presente. Denise, o nome que quer dar à filha, é o da mãe. "Ela é especial pra mim. A primeira vez que minha mãe usou crack acabou com a minha vida. O crack matou a minha mãe [ainda viva]. Ela era trabalhadora, fazia faxina na casa do pessoal, lavava roupa. Começou a ficar magra, perdeu o corpão que tinha, ficou grávida. Minha casa parecia um lixão."

Vinicius virou menino de rua. Tinha oito anos. "O pior da rua é o frio e a fome." Faz frio em Fortaleza? "De noite, sobre o papelão, faz muito frio." Como é a fome? Ele aponta a boca do estômago. "Dói aqui. E faz uma zoada."

O terceiro é o nome do pai. Vicente. O que faz o pai acordar é a cachaça. O que faz dormir, também. Vive das festas de padroeiros, pelos interiores do Ceará. Como pedinte.

Está completo o sonho de Vinicius. Se o sonho virar um dia futuro, tempo hoje improvável, ele recupera a família que perdeu e o amigo que jamais poderia ter morrido. É um sonho redondo, um círculo perfeito. É uma bola. Como aquela que guarda embaixo da cama que divide com a irmã Daiane, de nove anos.

Eu brinco com o que não se pode brincar. Pergunto se não é cedo para formar uma família. Vinicius me fulmina com uma frase: "Nunca é cedo para ter família, cedo é ficar sem".

Quando estava na rua, Vinicius foi procurado por Antônio Carlos da Silva, um educador da ONG O Pequeno Nazareno, a mesma que organizou o time da seleção. "Ele me mostrou as fotos de um sítio onde tinha açude cheio e cavalos. Eu fui. O açude estava seco e não tinha cavalos. Mas tinha futebol. E tinha almoço." Nesse dia, ele ainda estava com "a cabeça cheia de solvente". Na primeira vez, entrou em campo drogado. Alguém perguntou: "Você sabe jogar futebol?". Ele respondeu: "Sei". E jogou.

Vinicius vive hoje numa casa de três peças na favela. O irmão, de 17 anos, a namorada do irmão, a irmã pequena e ele. Nenhum adulto. Os pais se perderam, os filhos se agarram uns nos outros. Pela manhã, Vinicius trabalha de aprendiz numa organização que faz cisternas para combater a seca. À noite vai para a escola de bicicleta. Me puxa pelo braço, quer mostrar uma frase atribuída a Bob Marley que tem no celular: "Vocês riem de mim por eu ser diferente, eu rio de vocês por serem todos iguais". Aprendeu a gostar de Bob Marley com um menino sem teto. "Mas já tá morto."

Nas conversas dos meninos dessa outra seleção brasileira também se fala em estratégia. Mas são outras, as de como driblar os traficantes. Vinicius tem ginga, seu futebol é poesia. Brutal, mas poesia: "Não vou prum lado, nem pro outro, senão eu morro, porque são gangues rivais. Um lado vende droga, o outro também. Se confrontam. Eu falo com tudinho, os de baixo e os de cima. Quando começam a querer formar, eu corto caminho. Sobreviver é isso".

A mãe mora num canto, o pai em outro. Já foram triturados pelo moinho de Cartola. Quando Vinicius apresenta o pai, ele corre a buscar a carteira de trabalho. Para provar que um dia foi pedreiro, como tem certeza que está escrito no documento que não sabe ler. Ele também tinha um sonho. "Meu sonho era um futuro." Aos 48 anos, abre os braços, um dente apenas na boca: "A vida hoje é nada". E chora. Vinicius apresenta a mãe. Ela ainda usa crack, mas não o tempo todo, como antes. Aos 34 anos, resiste, junta moedas num cofrinho para o bolo de aniversário da filha de cinco anos. "Eu queria ser feliz." E chora.

Vinicius não chora. Ele ainda está no jogo. No presente. "Quando eu jogo futebol, esqueço tudo." Mas até o time está ameaçado, porque não há mais dinheiro para bancá-lo. Essa seleção não tem patrocinador para um valor mensal de R$ 4.024. Esse Brasil, como Vinicius, luta para não morrer.

A rua da favela está enfeitada de bandeirinhas verde-amarelas para o jogo de hoje. Vinicius ajudou a colocá-las. Se estiver vivo quando a seleção entrar em campo contra o México, ele já fez o seu gol, num Brasil de ângulos impossíveis. Nessa jogada, é melhor do que Neymar.

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