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Eliane Brum: Deus e o diabo na terra do gol

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O futebol cumpriu sua mágica de produzir acontecimento e acaso. Na Copa de 2014, a seleção brasileira criou um drama com os pés, salgou de lágrimas as chuteiras. Chega hoje ao Mineirão para disputar a semifinal contra a Alemanha em amarelo épico. Sem seu craque maior, sem seu capitão. Se vencer os alemães, será a apoteose, a realização de um destino. Se perder, em parte já está absolvida. Em qualquer roteiro onde há deus e diabo, o bicho humano está à deriva. E nessa trajetória há muito deus e o "diabo", que andava faltoso, foi criado há pouco, na pele do colombiano Zúñiga, usando os joelhos para roubar do Brasil Neymar e a glória. De diabo o colombiano, que só fez entrar duro num jogo duro, não tem nada, mas esse sempre foi um personagem que só pode cumprir seu papel quando propositalmente mal compreendido. Com deus e diabo a narrativa fica mais mítica.

Tudo começou com tanta assepsia que parecia um banheiro de shopping chique. Uma seleção de garotos milionários, quase todos jogando em times europeus, bem longe do Brasil. Controlados pela CBF, exilados bem no alto, na Granja Comary, de onde só desciam para falar tendo as marcas dos patrocinadores como moldura, as respostas já treinadas antes com os "media trainings". E, em seguida, retirados para o topo. Até as supostas novidades no programa eram bastante programadas. Para evitar a leitura labial, onde algo podia escapar do controle, botavam chuteiras e mãos na boca quando conversavam uns com os outros. Quando aterrissavam no campo, o futebol não empolgava, não era bonito, não era Brasil. Queria-se uma seleção brasileira quando a seleção era da CBF, cumprindo não um destino, mas um ambicioso plano de negócios.

E, então, a vida se imiscuiu. A transgressão não veio pelo pé, mas pelas lágrimas. Choraram para muito além do hino a capela. Até então era mais reza e frases de autoajuda no aperto. No jogo contra o Chile choraram em momento-limite. O "menino de ouro" Neymar, que ajeitava o cabelo, conhecia o melhor ângulo para as fotos, correu a se aninhar no peito do pai Felipão. Mas, porque tem a convicção de que seu papel é ser um menino de ouro, foi lá e fez o seu gol. O capitão Thiago Silva, não. Acovardou-se, pediu para não bater pênalti, foi tomado pelo medo de fracassar diante de milhões. Humanizou-se.

Cada choro é um choro e há muitas formas de interpretar o de Thiago Silva. Surpreendido pelo imprevisível, que ele deveria conhecer bem, pode não ter suportado a falha no roteiro. Ao não suportá-la, talvez tenha feito o que melhor um capitão pode fazer num futebol de mercado: deixou escapar que não era um produto. E então o futebol, com sua melhor estética de drama, escapou do controle e começou.

A trajetória de herói do goleiro Júlio César, que na Copa de 2010 foi vilão, ficou logo em segundo plano, porque o espetáculo só mantém o movimento por espasmos. Heróis e vilões no futebol se convertem um no outro num segundo. O choro ganhou o centro do palco. Dizem os entendidos que Felipão é um técnico sem muita técnica. Mas como entende de gente. Assombrado pela ameaça da derrota, foi logo tratando de valorizar o "emocional" dos jogadores. A falha não era tática, dizia mais respeito a Freud do que a ele.

Mostrou-se preocupado. Escalou a psicóloga como titular. "Regina Brandão está aqui", era anunciado no início das coletivas da Granja Comary pelo diretor de comunicação da CBF, Rodrigo Paiva, suspenso por quatro jogos porque teria dado um soco num jogador do Chile. Assim que lhe foi conveniente, Felipão passou a mandar recados de que a imprensa valorizou demais o "choro". Diante da reclamação de que privilegiou seis jornalistas numa conversa, reforçou o personagem: "Gostou, gostou. Se não gostou, vá pro inferno".

A seleção entrou em campo contra a Colômbia de cara fechada. Thiago Silva fez gol. Depois atropelou o goleiro, levando o cartão amarelo que o tirou do jogo de hoje. Provou que chorava, mas também era duro, até truculento, como o senso comum espera de um capitão. Infrações são mais bem-aceitas do que lágrimas nesse mundo de testosteronas infladas. Chorariam ou não?, era a pergunta no ar. Quem chorou foi Neymar, de dor, excruciante dor, depois da joelhada de Zúñiga, o que de jeito nenhum estava no roteiro. De repente, o herói estava fora da Copa. O drama atingia seu ápice.

Desde o início tecia-se uma narrativa de injustiças contra a seleção brasileira nos campos bem aparados da Comary. Os árbitros apitavam contra, a Fifa não quer que o Brasil seja hexa, a imprensa, em vez de apoiar, faz críticas. Tudo isso rolava com a bola em campo e fora de campo. Agora, havia um inimigo. E como Felipão gosta de inimigos! E como sabe usá-los! Se deus não está dando conta, é o diabo que entra em cena. E o diabo era Zúñiga, que nem cartão amarelo levou, a prova final de que a arbitragem, a Fifa, o mundo está contra o Brasil. O país é tomado por comoção, a identificação se completa, cada brasileiro é Neymar. No jogo contra a Alemanha será o Brasil contra todos. Finalmente a seleção cumpre, ainda que por caminhos enviesados, o seu papel de ser épica.

No centro desse espetáculo desponta David Luiz. Com quem sempre se pode contar, dentro e fora do campo. A cabeleira de negro é ruiva, de repente ele arranca numa corrida esquisita, meio desengonçada, quase comovente. Bate até falta "de chapa". "Nasci com os pés abertos, no Brasil se diz dez pras duas", explica em inglês. Que um zagueiro ocupe o papel que costuma ser dos atacantes diz algo sobre essa seleção. Mas David Luiz está lá, valente e focado no gesto de construir seu próprio mito.

Nas vírgulas desse grande drama, esboçam-se pequenas cenas. Como a de Fred, o olhar de quem não acredita que a história está passando sem ele. Reclama, esperneia, enquanto ainda há jogo é possível mudar o roteiro. Há o passo vacilante de Jô, na zona mista, olhando disfarçadamente, com seu tipo espichado, para constatar que são poucos os jornalistas que querem saber o que ele pensa. Há Maicon, que de fato é Maicon Douglas, no nome completo toda a esperança de um destino hollywoodiano. Há todo os reservas, sempre na expectativa de serem chamados. Quase lá e a distância tão curta entre o banco e o campo às vezes é uma lonjura.

Nos treinos, os jogadores aplicam petelecos uns nos outros, fazem saltos de mula, quase crianças num campinho de rua. Pouco se adivinha da disputa interna, a voragem humana que os incendeia na intimidade para superar o colega e brilhar como titular. "O professor [Felipão] é que sabe" é a resposta obediente. O pai sempre tem seus filhos preferidos. Desde o princípio, todos os outros tiveram de responder primeiro sobre o perigo de um time depender tanto de Neymar, depois como ganhar com um time sem Neymar. E então surge o clamor, que moveu o Brasil em tragédia recente, agora referindo-se ao substituto de Pelé na Copa de 1962: "Onde está o Amarildo?".

E há ainda as mortes que não puderam ser choradas como se devia, como os dois parentes de Felipão, o avô querido de Marcelo, que o carregava no seu Fusca para os treinos. Perdidos no percurso da Copa, a vida em sua brutalidade indiferente, ignorando a impropriedade da hora.

Tudo isso estará em campo daqui a pouco. O futebol em todo o seu imprevisto. Deus e o diabo invocados apenas para suportar a tragicidade de um destino humano.

Vanderlei Almeida/AFP
Thiago Silva (dir.) chora e abraça Fernandinho na vitória nos pênaltis sobre o Chile
Thiago Silva (dir.) chora e abraça Fernandinho na vitória nos pênaltis sobre o Chile
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