Mônica Bergamo
A verdade é o todo
Ex-presidente do Palmeiras diz que será uma ilusão acreditar que a condenação de alguns cartolas brasileiros investigados pela Fifa ajudará a acabar com a corrupção no futebol
Luiz Gonzaga Belluzzo, 72, já sofreu um infarto, em 2010, que os amigos mais próximos acreditam ter sido causado pela paixão incontrolável que ele tem pelo Palmeiras.
O economista era presidente do clube. Dessa janela privilegiada, assistiu às articulações para a realização da Copa do Mundo e participou de uma rebelião de clubes para melhorar a negociação dos direitos de futebol com a TV Globo. Agora, quando José Maria Marin, ex-presidente da CBF, e J. Hawilla, da Traffic, foram presos, na esteira dos escândalos que envolvem a Fifa, ele acha necessário citar o filósofo alemão Friedrich Hegel: "A verdade é o todo".
"Não adianta dizer que Marin é corrupto, que o cartola tal é corruto. O sistema, do futebol brasileiro e do futebol mundial, é gerador de corrupção." Abaixo, a entrevista que ele concedeu à coluna em seu apartamento, em SP.
Folha - Em 2011, quando o Clube dos 13, que tentava negociar em conjunto os direitos de transmissão dos jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol com as emissoras de TV, rachou, o senhor falou que o futebol brasileiro era uma sujeira. Que conexões o senhor faz entre aqueles fatos e a prisão, agora, de J. Hawilla e do ex-presidente da CBF, José Maria Marin?
Luiz Gonzaga Belluzzo - Eu dei uma entrevista no ano passado, às vésperas da Copa do Mundo, quando ainda havia aquela controvérsia, vai ter Copa, não vai ter Copa. E usei a eleição do Clube dos 13 de 2011 como exemplo de como funciona o futebol. A entidade tinha sido organizada pelos 13 principais clubes brasileiros nos anos 90, para que cuidassem de seus interesses. E a ideia, em 2011, era transformá-lo em uma liga.
Os clubes, por meio dessa liga, organizariam os campeonatos e negociariam os direitos de transmissão. A CBF cuidaria só da seleção.
Entre 2009 e 2011, nós discutimos muito essas duas questões. O então presidente do Clube dos 13, Fábio Koff, concordou inteiramente.
O que não funcionava bem?
A CBF organizava [o Campeonato Brasileiro] e a TV Globo comprava o valor total dos direitos de transmissão do Clube dos 13, em cotas que eram distribuídas entre os sócios [clubes] depois, de maneira desigual. As cotas não eram suficientes [eram vendidas por pouco dinheiro]. Nem bem distribuídas.
Como era a distribuição?
Palmeiras, Corinthians, Flamengo e São Paulo recebiam cerca de R$ 30 milhões. Os outros, bem menos. Nós achávamos que a distribuição não favorecia a melhora na competição. O presidente do Sport [Recife], por exemplo, me disse que só recebia R$ 15 milhões. A disparidade era enorme.
E os que não concordavam com essa estratégia [de transformar o Clube em liga] apresentaram outro candidato, o Kleber Leite.
Quem não concordava?
Basicamente a CBF e a Globo, que era a detentora dos direitos de transmissão. E o Kleber Leite era o candidato deles. Se vencessem, eles ocupariam também o Clube dos 13 e fechariam o, digamos, sistema brasileiro de futebol. Derrotariam o movimento de clubes que começavam a se rebelar. E nós apoiávamos o Koff, que se comprometeu com o projeto de melhorar o valor pago pela TV pelos direitos de transmissão.
Havia a questão do horário de transmissão dos jogos.
Sem dúvida. Transmitir um jogo às 22h é horário de lobisomem com mula sem cabeça. Os torcedores tendo que sair dos estádios à meia-noite, chegando em casa às 2h. Queríamos mudar o horário e isso se chocava com a grade de programação da Globo. Eles estavam defendendo os interesses deles, legitimamente, mas isso colidia com os interesses dos clubes. Enfim, queríamos mudar o modelo de relações entre os clubes e o detentor dos direitos de transmissão, a TV Globo. Nesse período, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) revogou o direito de preferência da Globo [de transmitir o campeonato].
E o que ocorreu?
A eleição definiria o destino do Clube dos 13, se ele se transformaria em liga, com capacidade de negociar de maneira independente, ou não. O pleito transcorreu num clima de muita tensão, por causa da pressão enorme que o Ricardo Teixeira [então presidente da CBF] fazia sobre os clubes.
J. Hawilla atuou naquele momento? Ele falava em nome da TV Globo ou da CBF?
Não. Ele veio falar em nome do que ele achava que seria melhor para o futebol. Ele estava agindo a partir do que achava que tinha a ver com os interesses da empresa dele. Nós almoçamos juntos. Foram conversas civilizadas.
E como tudo terminou?
Terminou no seguinte: nós ganhamos a eleição. Estávamos preparando a licitação [para a escolha da emissora que transmitiria o Campeonato Brasileiro, que tinha Globo e Record como interessadas] quando fomos todos almoçar no restaurante El Tranvia [em Santa Cecília]. Estávamos o Luis Álvaro [de Oliveira, então presidente do Santos], o Juvenal [Juvêncio, então presidente do São Paulo], o Andrés Sanchez [então presidente do Corinthians] e eu. E o Andrés avisou: "Eu vou implodir o Clube dos 13 porque isso aí tá amarrando tudo". E realmente o Andrés saiu e fez uma negociação à parte com a TV Globo, muito vantajosa. E também o Flamengo. A Globo chamou os dois e diferenciou mais ainda as cotas. O Clube dos 13 implodiu. Foi uma negociação comercial bruta, digamos assim. Feita com certa brutalidade.
É bom que fique claro que o nosso problema não era com a Globo. Nós não queríamos tirar a Globo. Era com o contubérnio Globo, CBF e negociadores de direitos de transmissão. Nós queríamos mudar o padrão. A Record se apresentou [para a licitação em que seria escolhida a TV que transmitiria o campeonato]. E nós queríamos os melhores preços e horários.
Se houvesse uma liga dos clubes, que buscam maximizar seus rendimentos, certamente o sistema de vigilância e controle [sobre a negociação] seria maior. Na verdade, estávamos fazendo uma coisa quixotesca. A relação de força entre os dois grupos era muito distinta.
E Andrés se explicou?
Naquela época ele fez um discurso justificando a escolha dele em ficar com os que perderam a eleição [Globo e CBF]. [O cartola disse numa reunião de clubes: "Sou amigo do Ricardo Teixeira mesmo, sou amigo da Globo mesmo, apesar de ser gângster".] O Andrés é assim, fala o que vem na cabeça dele, tem todo o direito de fazer isso.
Mas o que ele explicou?
Ele deixou claro o seguinte: o projeto deles era fechar o sistema de gestão financeira e esportiva do futebol, de modo que não houvesse fissuras, não houvesse ninguém querendo atrapalhar. Os horários teriam que ser aqueles, as cotas estavam definidas. Depois que o Clube dos 13 acabou, os clubes cederam, era cada um por si. E aí você tem que entender que a maioria dos clubes estava com problemas financeiros. Estavam sempre pendurados no adiantamento de cotas que a Globo dava. Eles são a parte frágil desse tripé [de gestão do futebol].
O presidente de um clube me telefonou na época e disse: "Eu gostaria de votar com vocês. Porém, o senhor é presidente de um clube grande e eu sou presidente de um clube frágil economicamente. Eu vou ter que votar no Kleber Leite". Não estou dizendo que houve corrupção. Estou dizendo que pode ter havido promessa de facilitar algum financiamento, etc etc.
Como o senhor definiria esse sistema de gestão financeira e esportiva do futebol?
Eu não vou tratar de questões relacionadas com Conmembol (Confederação Sul-Americana de Futebol), essas coisas [referindo-se aos escândalos que resultaram na prisão dos brasileiros J. Hawilla e José Maria Marin], porque isso aí é outro departamento.
Na verdade, faz parte do mesmo sistema, porém de uma forma ampliada e muito mais importante do que essa negociação específica dos clubes brasileiros. É um sistema que tem certas regras de funcionamento: há dominâncias e dominados.
E quem está de cada lado?
No caso das dominâncias estão as confederações, as federações e os detentores dos direitos de transmissão, a Globo. É fácil dizer que o Marin é corrupto, que o cartola tal é corrupto. Pode até ser que seja, mas ele está lá cravejado de pressões.
Não adianta falar sem olhar como funciona. Você vai ficar prisioneiro de uma dicotomia que não existe.
Como dizia Hegel, a verdade é o todo. O que existe é um sistema que gera dinheiro e distribui esse dinheiro de uma determinada maneira. E ele gera favorecimentos, pressões. O sistema, do futebol brasileiro e do futebol mundial, é gerador de corrupção. Ele funciona assim.
Basta olhar o relatório dos investigadores americanos [sobre a Fifa]. Aliás, eu não acho que os americanos fizeram isso por virtude. Eles são seletivos e não são confiáveis nessas coisas. Mas trouxeram à tona a questão da estrutura, digamos, corrupta do futebol mundial. Há um velho ditado que diz que Deus escreve certo por linhas tortas.
E outra coisa que me espantou é que, quando ocorreram as prisões nos EUA, imediatamente as autoridades brasileiras correram para investigar a empresa do Kleber Leite. Quer dizer, há anos isso aí tá aí e ninguém se mexe. E agora nossas autoridades se comportaram como lulu de madame diante das autoridades americanas. Foi só eles acionarem, correram lá. Isso é muito grave. Revela que o Brasil está disposto a ceder parte de sua soberania.