Diário de Pequim
O MAPA DA CULTURA
O amigo chinês
Tao e o meu "guanxi"
"Guanxi" é uma das primeiras palavras em mandarim que todo estrangeiro aprende na China.
Traduzida literalmente, significa "relacionamento". Mas o termo tem um sentido cultural mais amplo do que em outros países. Como ensinam os muitos manuais de sobrevivência para forasteiros na China, "guanxi" é a rede de influência que se aplica a todas as esferas do convívio social, da paquera aos negócios. Para se dar bem na China, advertem, é fundamental ter "bom 'guanxi'".
Verdade que a inclinação da China ao isolamento durante longos períodos de sua história e sua ambivalente abertura ao mundo exterior persistem como uma marca indelével do caráter chinês.
Não é à toa que os símbolos nacionais são a Grande Muralha e a Cidade Proibida. É comum encontrar estrangeiros que vivem no país há anos e não têm um só amigo chinês de verdade.
Alguns conseguem ultrapassar a muralha, com tempo e paciência. Ou num golpe de sorte, como no meu caso. Eu tenho um amigo chinês, seu nome é Tao.
Somos vizinhos em um conjunto residencial de prédios baixos, construído nos primeiros anos da abertura econômica da década de 1980, quando Pequim ainda não havia sido tomada pelos arranha-céus de hoje. Desde os primeiros papos sobre futebol, a empatia foi imediata. Tao se tornou meu professor de chinês, parceiro de peladas e melhor amigo.
Nascido em Pequim em 1981, Tao faz parte da primeira geração da abertura, que cresceu sob o impacto da transição entre o pesadelo da Revolução Cultural e o sonho de prosperidade que explodiu nos anos seguintes. Bom de bola, quase virou jogador profissional. O futebol lhe rendeu uma vaga na Universidade de Pequim, a melhor do país. Formou-se em direito, mas a ideia de ser advogado na China comunista não o animou.
Abriu uma escola de idiomas e dá aulas de chinês e inglês. O sonho é trabalhar com futebol.
NO LUTO
No último mês, dois acontecimentos opostos aprofundaram nossa amizade. O primeiro foi a morte do sr. Li, pai de Tao. Morte é um assunto tabu na China, raramente levantado em público. A aversão é tamanha que o número quatro é evitado a todo custo, porque em mandarim ele tem o mesmo som da palavra morte. Muitos prédios não tem quarto andar e números de telefone com o algarismo são mais baratos.
Tao se abriu comigo, compartilhou sua dor, numa prova de confiança e amizade nada trivial.
O funeral foi no cemitério de Babaoshan, no oeste de Pequim, o mais importante da China, onde estão sepultados os heróis da Revolução Comunista. Construído no local onde ficava um templo da dinastia Ming (1368-1644), ainda preserva algumas construções da época, quando era um retiro para eunucos que terminavam seu serviço ao imperador. Os rituais fúnebres variam muito na China, de acordo com as crenças de cada região, que incluem xamanismo, confucionismo, budismo, taoísmo e outras.
Numa das dezenas de salas com composição semelhante estava o caixão aberto do sr. Li, cercado por coroas de flores de papel e uma foto grande dele. Ao entrar, parentes e amigos se curvavam três vezes diante do caixão, antes de dar os pêsames aos familiares. A viúva soluçava de forma contida, mas comovente. Terminado o ritual, fomos para um restaurante próximo, para um farto almoço, com direito a cerveja e doses de baijiu, a cachaça chinesa. O álcool tornou o clima mais leve e houve mais riso que choro.
ANO NOVO
Duas semanas depois, chegou o Ano Novo lunar, principal festa do calendário chinês. Convidado por Tao, parti com ele para o sul de Pequim, onde fica a casa de sua avó. Aos 84 anos, mãos calejadas de ex-operária de fábrica e sorriso permanente, ela vive numa casa de dois cômodos sem banheiro em um bairro modesto.
Família reunida, começa a tradicional e interminável sucessão de pratos. Contei mais de 20 pratos no jantar, saboreados numa alegre algazarra com todos falando ao mesmo tempo. Três gerações que conheceram Chinas muitos diferentes, mostrando a um "laowai" (estrangeiro) que o melhor "guanxi" é a amizade.