João Carlos Martins
O último voo de Havana para Miami
Tenho a esperança de ver, em um futuro próximo, as Américas unidas sem todos os sectarismos que hoje atingem a nossa região
Em abril de 1961, estive em Havana para fazer um recital no teatro Auditorium. Depois, seguiria para os EUA, onde eu estrearia dias depois como solista da Orquestra Sinfônica Nacional de Washington. Este artigo, no entanto, não é sobre música, mas, sim, sobre uma época histórica na América Latina.
Após o concerto, houve uma grande recepção na Embaixada do Brasil. Durante o evento, algo pairava no ar. Àquela altura eu já estava mais preocupado com o meu concerto em Washington na semana seguinte, mas pude observar que o ambiente era de muita apreensão, cuja causa não consegui detectar.
Hospedado na embaixada, fui dormir à meia-noite. Às 3h, a governanta Concepción me acordou assustadíssima. Disse que eu tinha de deixar Havana no dia seguinte porque haviam acabado de ter a informação de que o último voo da Panamerican de Havana para Miami seria naquela manhã. Se eu perdesse o voo, "bye, bye", Washington.
Ali começou o drama. Concepción me disse que algumas das famílias que estavam saindo de Cuba só teriam a certeza da viagem no exato momento do embarque, pois na chamada final no aeroporto, se a família tivesse seis integrantes --o pai, a mãe e os quatro filhos, por exemplo--, cinco poderiam ser chamados, mas, talvez, não chamassem a criança caçula, o que levava a família a decidir permanecer.
Às 5h, ela voltou ao meu quarto com três casais, que me pediram um favor. Como viajavam em mais de cinco pessoas, perguntaram-me, já que eu não seria revistado no aeroporto, pois era convidado do governo cubano, se eu poderia levar cerca de US$ 10 mil comigo. Caso eles embarcassem, eu lhes devolveria o dinheiro em Miami.
O outro casal, pelas mesmas razões, entregou-me vários diamantes e o último, algumas joias.
À época com 20 anos, evidentemente, fiquei assustado. A minha primeira reação foi a de recusar os pedidos, mas quando vi as esposas chorando e os maridos desalentados, decidi atender aos pedidos.
Perguntei a eles: "E se vocês não embarcarem, o que eu faço com isso tudo?". "Entregue tudo para a Estátua da Liberdade, pois esta é a nossa última chance", disseram.
Se eles conseguissem embarcar, o combinado era que, após sair da alfândega nos EUA, eu caminharia cem metros para o lado direito e, depois, devolveria os pertences a eles.
Na entrada do avião me bateu o pânico quando um militar me olhou fixamente durante alguns segundos. Acabei derrubando todas as folhas soltas das partituras do concerto que iria executar, causando um alvoroço. Vários militares me ajudaram a recolher todas aquelas folhas espalhadas pelo chão.
Graças a Deus todos conseguiram embarcar neste último voo para os Estados Unidos e eu pude devolver a cada um o que lhe pertencia.
Três dias depois consegui finalmente entender a atmosfera que reinava durante a recepção na Embaixada do Brasil em Cuba. Iniciava-se naquele dia aquela que foi chamada de "Invasão da Baía dos Porcos".
Cinquenta e quatro anos depois de ter vivido esse tenso momento da história, é possível que os EUA reabram sua a embaixada em Havana. Tenho a esperança de que ver, em um futuro muito próximo, as Américas unidas sem todos os sectarismos que hoje, infelizmente, atingem a nossa região.