THALES DE MENEZES
DE SÃO PAULO

O músico baiano Nikima, 40, lançou na véspera do Natal, em todas as plataformas de streaming, o disco de música eletrônica "Auss & Auss". Falando assim, ninguém pode sequer imaginar tudo aquilo que vem integrado a isso. É, literalmente, um universo.

"Auss & Auss" é uma ambiciosa narrativa transmídia. Traduzindo: é uma história contada em várias plataformas. No caso, uma saga de ficção científica sobre um conglomerado, Auss & Auss, que domina economicamente a Terra ao ter o monopólio de produção de energia.

Para entender todo o enredo, é necessário acompanhar seus capítulos espalhados por músicas, textos, vídeos, HQ, posts em redes sociais e até em estampas de camisetas e bonecos de toy art.

Na verdade, não é preciso muito esforço logo de cara. "Auss & Auss" seguirá uma estratégia de lançamentos sequenciais, permitindo assimilação gradual da trama.

"É uma estratégia de engajamento", diz Nikima à Folha. "Montei a história, gravei as músicas, mas não poderia entregar um calhamaço. Estaria exigindo demais do púbico de um artista independente. E eu tenho amigos que nunca leram um livro! Vamos trabalhar compartilhando aos poucos o conteúdo."

Neste primeiro momento, o site oficial do projeto (www.aussnauss.com ) oferece as 12 músicas do álbum e os seis primeiros capítulos, em textos curtos. Estão à venda camiseta, pôster e um robôzinho (personagem que tem papel fundamental na trama). Esses itens trazem impresso um QR code que leva ao site.

Essa meia dúzia de capítulos corresponde à metade da primeira temporada de "Auss & Auss". Sim, tudo será disponibilizado em temporadas, como séries de TV. A segunda metade da primeira será oferecida em breve. E devem vir a segunda, a terceira...

Antes de esmiuçar ainda mais o conteúdo e essa estratégia, vale contextualizar a trajetória de Nikima.

Ele fez parte da banda de rock Lampirônicos, que teve contrato com a Sony há quase duas décadas, mostrando uma mistura de música regional com sons eletrônicos. Em 2003, em trabalho solo, Nikima se interessou pelos soundsystems jamaicanos, potentes mesas de som.

Montou então seu Tabuleiro de Mídia, que tinha de gramofone a MP3. Atuando em Salvador, manteve um centro cultural, o Casarão Santa Luzia. Aí veio o convite para ser assessor de Gilberto Gil no Ministério da Cultura.

KUROSAWA E ANIME

Depois de trabalhar em Brasília, foi para Portugal estudar música eletrônica, buscando uma vivência na Europa. Foi lá que teve contato com duas exposições muito díspares que foram fundamentais para seus planos de voltar ao mercado da música.

Em Madri, viu reunidos os storyboards que o diretor japonês Akira Kurosawa (1910-1998) desenhava para seus filmes e as roupas de samurai utilizadas nas produções. Em outra, viu uma retrospectiva de animes, os desenhos japoneses que seguem a estética dos mangás.

Quando ainda processava na cabeça as mídias aglutinadas nessas exposições –cinema, arte visual, moda, quadrinhos, animação–, outra coisa despertou seu interesse. "Eu ia até a Fnac à tarde e via a seção de discos vazia. Enquanto isso, as áreas de games e quadrinhos estavam cheias de gente. Jovens e mais velhos. Quem eram aqueles pessoas que estavam ali às três da tarde, consumindo esse material?"

Nikima conta que teve a percepção de que a música estava deixando de gerar receita como um produto, mas poderia ajudar a qualificar outros. "Um game precisa de música, animações também."

Ele ressalta a diferença entre a narrativa transmídia e a chamada crossmídia. "Uma coisa é pegar uma série de TV e adaptá-la para um livro. É a mesma história. Na transmídia, o usuário é conduzido por plataformas que apresentam material complementar. Ele não encontra ali o que já viu em outras mídias."

Segundo ele, decidir o que irá entregar em cada etapa é uma engenharia criativa. "É como fazer upgrades. Agora no início, os capítulos são mais curtos, as informações são mais telegráficas."

Quem navega é induzido a "entrar" na história. A Auss & Auss oferece a chance de um emprego na empresa. Os interessados recebem formulários e questionários para um processo de seleção.

A empresa fictícia tem sede em Riga, capital da Letônia. Nikima elegeu essa localização depois de descobrir que "auss" em letonês significa "orelha". Mas o nome dos irmãos donos do conglomerado tem outra origem.

Nikima se inspirou em Marcel Mauss (1872-1950), o "pai" da antropologia francesa, e no filósofo belga Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Há implicações do trabalho deles no projeto. "Não é explícito, mas em algum momento isso será destacado."

O músico tem uma equipe trabalhando com ele e se associou a alguns parceiros para a produção de algumas peças, como a Kalugarte, que criou o robozinho Chris, e os ilustradores Alex Bispo e Raoni Assis, que fizeram a HQ que ilustra pôster e camiseta.

Nikima acredita que poderá ganhar dinheiro com "Auss & Auss". Por enquanto, investe dinheiro próprio e emprestado para tocar o projeto. "Cursei administração de empresas e trabalhei muito em estudos para viabilidade financeira de projetos culturais. Criamos um modelo para que todos os envolvidos tenham remuneração."

O show, que virá com produção audiovisual e versões mais dançantes das músicas, deve render bilheteria. Neste momento, ele diz que faz um caminho inverso ao de outros artistas. "Primeiro a banda ou o artista faz discos e shows e aí vende seu merchandising. Eu vendo os produtos antes da música."

Camiseta, pôster e bonequinho estão na loja virtual Crioula (www.crioula.com.br ). A t-shirt também está na loja Afreeka (afreeka.com.br ).

Para entender (ou quase) a saga

"Auss & Auss" é uma ficção científica passada depois da Terceira Guerra Mundial, fruto de acirrada corrida armamentista que esgotou todos os combustíveis fósseis. O mundo, em colapso energético, enfrenta frio, fome e convulsão social. E nesse cenário surgem os irmãos Auss.

Eles inventam o sistema Acephalus, que propõe a utilização de neurogeradores. São pessoas que recebem headphones e óculos de realidade virtual. A partir de audição de músicas, elas se emocionam e criam um espaço virtual em que podem interagir.

Cada uma assina autorização para receber aplicações de mechaína, substância para síntese de milineurais, cargas energéticas produzidas no corpo. Dependendo da alteração emocional provocada, o neurogerador produz mais ou menos energia, captada pelo sistema.

Os irmãos, com essa tecnologia, monopolizam a produção da energia no planeta. A Auss & Auss passa a dominar todos os setores da economia.

O protagonista dos primeiros capítulos de "Auss & Auss" é um neurogerador que intriga os robôs controladores do sistema. Ele não sente emoção alguma, mas mesmo assim gera misteriosamente uma quantidade enorme de energia. A ponto de ser responsável por 70% dos milineurais produzidos.

Uma sobrecarga acidental de mechaína afeta os neurogeradores, especialmente o maior provedor da empresa. A partir daí, muita coisa acontece.

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