'Corra!' faz releitura de 'Adivinhe Quem Vem Para o Jantar'

Daniel Kaluuya,como o fotógrafo Chris no thriller 'Corra!', de Jordan Peele
Daniel Kaluuya,como o fotógrafo Chris no thriller 'Corra!', de Jordan Peele - Divulgação

JULIANO GOMES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Os 50 anos que separam "Adivinhe Quem Vem para o Jantar" (Stanley Kramer, 1967) e "Corra!" (Jordan Peele, 2017), candidato ao Globo de Ouro neste domingo (7), expõem algumas permanências e movimentos.

Tanto em 1967 quanto em 2017, a sensação de uma acelerada mudança da ideia e sensação de "mundo" tem no debate racial um ponto decisivo.

Os EUA de 1967 viveram a maior sequência de levantes raciais de sua história –sendo o maior deles, Watts, justo onde o filme se passa, na Califórnia– e uma aurora de pensadores negros como Malcolm X, Luther King, Huey Newton e James Baldwin.

Sob esta moldura, a deliberada aposta na conciliação (seja no desenlace da trama, no perfil do protagonista de Sidney Poitier ou na linhagem do drama humanista "papa Oscar") revela que o conservadorismo, hoje patente no filme, já podia ser percebido à sua época.

A suavidade fluida que dá o tom da encenação, das falas, e do desenvolvimento dramático de "Adivinhe..." age como atenuadora da vibração insurgente que tomava o país (e também o cinema), tentando recalcar qualquer sensação de violência ou sobressalto.

A autoconsciência do processo é exemplar na única cena onde o casal de pais brancos sai às ruas, e bate no carro de um personagem negro que só lhes responde aos gritos.

A cegueira racial necessita um esforço deliberado de autoenclausuramento, uma recusa das ruas, do incontrolável. Os dois filmes centram seu desenvolvimento quase exclusivamente dentro de ricas "casas brancas", onde um homem negro é convidado a jantar.

Os donos são brancos liberais: portadores de um discurso de mudança, de "liberdade individual". Peele e Kramer expõem a fissura entre discurso e prática nestes.

Um dos méritos de "Corra!" é justamente sua habilidade em expor os dóceis brancos liberais como antagonistas.

A docilidade e polidez que eram matéria principal no filme de 1967 agora se tornam o centro do horror e crueldade.

"Corra!" é um dos momentos decisivos da história do cinema americano também porque nele percebemos que a sobrevivência da escravidão hoje se dá sob o véu sutil do acúmulo de "suaves" micro agressões e violações subjetivas "bem intencionadas".

O hábil jogo de camadas que Peele manipula expõe a atualização da escravidão nos dias de hoje. É ao mesmo tempo um libelo sobre a Era Pós-Obama e um tratado sobre a fundação do país –bombeada pelo sangue escravizado.

Simultâneo ao evidente, porém ainda negligenciado, genocídio literal da população negra, age um outro, ainda mais abrangente.

A dizimação subjetiva que faz com que pessoas negras vivam um "outro mundo" dentro desse, ou melhor, uma espécie de "não mundo", onde a maioria dos acessos lhe é negada –daí por exemplo, a urgência hoje de uma psicologia que se estruture a partir do marcador racial.

A invisibilidade desse homicídio íntimo produz adoecimento da psiquê negra em enormes proporções –Peele está atento a essa faceta.

A virada do olhar que "Corra!" produz faz de "Adivinhe Quem Vem para o Jantar" também um filme de horror –o que justifica revisitá-lo hoje.

A adequação grotesca do "negro-sem-defeitos" vivido por Poitier ao "mundo branco" pode ser vista hoje com sua violência devidamente exposta.

Talvez essa seja a marca central do debate racial pelo mundo: não há caminho sem a visibilidade dos variados modos de ação dos donos da norma, daqueles que são o centro das formas de olhar: os brancos.

"Corra!" aproveita a histórica oportunidade dramatúrgica e constrói uma galeria de personagens brancos desnudados em seu mal banal.

E num duplo movimento, revitaliza um gênero marginalizado (qual será a resposta da Academia?) que é o horror, realizando o mais lucrativo filme dirigido por um negro.

Peele decide aceitar o antigo jantar e enfrentar contradições. A intermitência das carreiras de artistas negros é deliberadamente produzida pela manutenção dos fluxos econômicos: escravidão é economia, exploração e extrativismo.

Cinquenta (ou quatrocentos) anos depois, persiste a pergunta: qual é o seu papel nesse mercado negreiro?

*

NO PÁREO
Veja os indicados ao Globo de Ouro

1 | CINEMA

Melhor filme (drama)
"Dunkirk"
"A Forma da Água"
"Me Chame pelo Seu Nome"
"The Post"
"Três Anúncios para um Crime"

Melhor ator (drama)
Daniel Day-Lewis ("Trama Fantasma")
Denzel Washington ("Roman J. Israel, Esq.")
Gary Oldman ("O Destino de uma Nação")
Timothée Chalamet ("Me Chame pelo Seu Nome")
Tom Hanks ("The Post")

Melhor atriz (drama)
Frances McDormand ("Três Anúncios para um Crime")
Jessica Chastain ("A Grande Jogada")
Meryl Streep ("The Post")
Michelle Williams ("All the Money in the World")
Sally Hawkins ("A Forma da Água")

Melhor filme (comédia)
"Corra!"
"Lady Bird"
"Eu, Tonya"
"O Rei do Show"
"O Artista do Desastre"

Melhor ator (comédia)
Ansel Elgort ("Em Ritmo de Fuga")
Daniel Kaluuya ("Corra!")
Hugh Jackman ("O Rei do Show")
James Franco ("O Artista do Desastre")
Steve Carell ("A Guerra dos Sexos")

Melhor atriz (comédia)
Helen Mirren ("The Leisure Seeker")
Saoirse Ronan ("Lady Bird")
Margot Robbie ("Eu, Tonya")
Emma Stone ("A Guerra dos Sexos")
Judi Dench ("Victoria e Abdul")

Melhor diretor
Christopher Nolan ("Dunkirk")
Guillermo del Toro ("A Forma da Água")
Martin McDonagh ("Três Anúncios para um Crime")
Ridley Scott ("All the Money in the World")
Steven Spielberg ("The Post")

Melhor roteiro
"A Forma da Água"
"A Grande Jogada"
"Lady Bird"
"The Post"
"Três Anúncios para um Crime"

Melhor ator coadjuvante
Armie Hammer ("Me Chame pelo Seu Nome")
Christopher Plummer ("All the Money in the World")
Richard Jenkins ("A Forma da Água")
Sam Rockwell ("Três Anúncios para um Crime")
Willem Dafoe ("Projeto Flórida")

Melhor atriz coadjuvante
Allison Janney ("Eu, Tonya")
Mary J Blige ("Mudbound")
Hong Chau ("Pequena Grande Vida")
Laurie Metcalf ("Lady Bird")
Octavia Spencer ("A Forma da Água")

Melhor filme estrangeiro
"Uma Mulher Fantástica", de Sebastián Lelio (Chile)
"First They Killed My Father", de Angelina Jolie (Camboja)
"Em Pedaços", de Fatih Akin (Alemanha)
"Loveless", de Andrey Zvyagintsev (Rússia)
"The Square", de Ruben Östlund (Suécia)

Melhor animação
"Com Amor, Van Gogh"
"O Poderoso Chefinho"
"Viva: A Vida É uma Festa"
"The Breadwinner"
"Touro Ferdinando"

Melhor trilha sonora
"A Forma da Água"
"Dunkirk"
"The Post"
"Trama Fantasma"
"Três Anúncios para um Crime"

Melhor canção
"Home" ("Touro Ferdinando")
"Mighty River" ("Mudbound")
"Remember Me" ("Viva: A Vida É uma Festa")
"The Star" ("A Estrela de Belém")
"This Is Me" ("O Rei do Show")

Liam Cunningham como Davos Seaworth na série 'Game of Thrones'
Liam Cunningham como Davos Seaworth na série 'Game of Thrones' - Helen Sloan/HBO

2 | TELEVISÃO

Melhor série (drama)
"Game of Thrones"
"Stranger Things"
"The Crown"
"The Handmaid's Tale"
"This is Us"

Melhor ator (drama)
Jason Bateman ("Ozark")
Sterling K. Brown ("This Is Us")
Freddie Highmore ("The Good Doctor")
Bob Odenkirk ("Better Call Saul")
Liev Schreiber ("Ray Donovan")

Melhor atriz (drama)
Caitriona Balfe ("Outlander")
Claire Fox ("The Crown")
Elisabeth Moss ("The Handmaid's Tale")
Katherine Langford ("13 Reasons Why")
Maggie Gyllenahall ("The Deuce")

Melhor série (comédia)
"Black-ish"
"The Marvelous Mrs. Maisel"
"Master of None"
"Smilf"
"Will & Grace"

Melhor ator (comédia)
Anthony Anderson ("Black-ish")
Aziz Ansari ("Master of None")
Kevin Bacon ("I Love Dick")
William H. Macy ("Shameless")
Erik McCormack ("Will & Grace")

Melhor atriz (comédia)
Pamela Adlon ("Better Things")
Alison Brie ("Glow")
Rachel Brosnahan ("The Marvelous Mrs. Maisel")
Issa Rae ("Insecure")
Frankie Shaw ("Smilf")

Melhor minissérie ou telefilme
"Big Little Lies"
"Fargo"
"Feud: Bette and Joan"
"The Sinner"
"Top of the Lake: China Girl"

Melhor ator em minissérie ou telefilme
Robert De Niro ("The Wizard of Lies")
Jude Law ("O Jovem Papa")
Kyle MacLachlan ("Twin Peaks")
Ewan McGregor ("Fargo")
Geoffrey Rush ("Genius")

Melhor atriz em minissérie ou telefilme
Jessica Biel ("The Sinner")
Nicole Kidman ("Big Little Lies")
Jessica Lange ("Feud: Bette and Joan")
Susan Sarandon ("Feud: Bette and Joan")
Reese Witherspoon ("Big Little Lies")

Melhor ator coadjuvante
Alfred Molina ("Feud: Bette and Joan")
Alexander Skarsgard ("Big Little Lies")
David Thewlis ("Fargo")
David Harbour ("Stranger Things")
Christian Slater ("Mr. Robot")

Melhor atriz coadjuvante
Laura Dern ("Big Little Lies")
Ann Dowd ("The Handmaid's Tale")
Chrissy Metz ("This Is Us")
Michelle Pfeiffer ("The Wizard of Lies")
Shailene Woodley ("Big Little Lies")

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.