"Folhas de Relva" ganha nova edição brasileira
Doutorando em letras na USP, Bruno Gambarotto começou a trabalhar na tradução "Folhas de Relva" (446 págs., R$ 65), do poeta americano Walt Whitman (1819-92), no início do mestrado, em 2003. Whitman é considerado o pai da poesia norte-americana moderna com este livro.
Cinco anos depois, quando Gambarotto tinha pouco menos da metade da obra traduzida, a editora Hedra o convidou a organizar e traduzir uma edição do livro.
O trabalho "me levou a considerar aspectos da poesia que não havia explorado anteriormente. Ao longo dos últimos três anos trabalhei na tradução do que restava e na revisão do todo", conta Gambartto.
Por e-mail, ele concedeu a seguinte entrevista à Folha.
*
Folha - Você está retomando uma parte do trabalho realizado durante seu mestrado (2004-2006). Quando você começou a trabalhar na organização e tradução desta edição que sai pela editora Hedra?
Bruno Gambarotto - Comecei a trabalhar com a tradução de "Folhas de Relva" no início do mestrado, no segundo semestre de 2003. A princípio, minha intenção era crítica, estava escrevendo em português no século 21 sobre um autor norte-americano do 19, e o exercício da tradução me aproximava do meu objeto: à medida que vertia os poemas eu pesava questões retóricas e conceituais, testava minha compreensão do original, isolava diferenças históricas, literárias e culturais e refletia sobre a possibilidade ou não de superá-las.
O que me interessava, naquele início, não era o produto final --a tradução--, mas o percurso, do qual desejava recuperar meu movimento de leitura, minhas reações como representante de uma cultura e um tempo diversos.
Um trabalho de crítica, que naquele momento era o que me ocupava, leva em conta outras questões --você precisa fazer levantamentos de fortuna crítica, inteirar-se de uma tradição de leituras e leitores, buscar uma linha de análise etc. Mas essa alteridade irresolvida, esse abismo entre mim e Whitman, algo que sentia como parte do meu trabalho e que uma tese ou dissertação muito devota a "explicações" e "contextos" pode até mesmo apagar-- essas eram questões que queria trazer para minha dissertação.
O convite da Hedra veio em 2008. Na época, tinha pouco menos da metade do livro traduzido --a referente à parte das edições com que trabalhei durante o mestrado (1855, 1856, 1861, 1867). A Edição do Leito de Morte me levava a considerar aspectos da poesia de Whitman que não havia estudado, bem como poemas que não havia explorado anteriormente.
Havia uma questão de conjunto --edição após edição, Whitman agiu de maneira retroativa, criando e desativando seções e redistribuindo poemas entre elas. Pensei no velho Whitman, como a Introdução deixa claro. Ao longo dos últimos três anos trabalhei na tradução do que restava e na revisão do todo.
Quais são as maiores dificuldades de fazer tradução de poesia?
Não penso que esta seja uma pergunta muito pertinente; talvez tudo dependa do poeta que você escolhe para a tradução --daquilo que ele culturalmente representa-- e das diferenças entre língua e cultura de saída e de chegada.
Falo por Whitman: levando-se em conta as exigências por assim dizer "mecânicas" da forma, em "Folhas de Relva" você está quase sempre livre dos jogos verbais, das felicidades ou infelicidades da rima, das cadeias rítmicas regulares etc.-- em suma, das muitas competências verbais que fazem a forma poética "tradicional" e que se combinam a questões de sentido que você recupera ou não, a depender de suas fidelidades.
Por outro lado, o que as vanguardas entenderam como "o verso livre" de Whitman move aspectos discursivos que colocam o tradutor --o brasileiro, por exemplo-- em um limite às vezes incômodo entre o prosaico e o declamatório e o aproximam de usos linguísticos e costumes para nós desconhecidos ou de difícil digestão. Mais do que o "ritmo bíblico", Whitman remete a uma arte oratória que unia púlpitos e palanques, não raro descendo deles para os usos urbanos ou partindo destes, em sentido oposto, rumo ao lírico.
No fundo, o tradutor precisa estar atento àquilo que se cristaliza como sentido, àquilo que, a partir do tempo e da sociedade, configura a forma --e no que se refere à poesia moderna, esse é um problema relacionado a um certo modelo de autoridade literária, à constituição do "autor".
Se pensamos no século 16, a poesia mobilizava um conjunto de elementos marcados, com o perdão do uso etimológico, institucionalmente: havia uma arte poética que centralizava e relacionava lugares comuns, formas de elocução, gêneros etc.
Vale dizer que a essas alturas era a própria arte poética sacramentada que garantia o proceder tradutório, como, de maneira bastante residual, se faz perceber na ideia de "versão" praticada ainda no século 19, hoje em desuso --vide leis de plágio.
A partir da segunda metade do século 19, essa "instituição" se libera à apropriação e transposição de materiais imprevistos pela tradição --e a atenção a essas questões, a atenção de um tradutor que já não conta com artes poéticas, mas com o trabalho crítico de bastidor, capaz de identificar tais variáveis e transpô-las a ponto de tornar-se um "autor do autor", faz-se necessária.
Quão importante foram as consultas às traduções brasileiras e à portuguesa para a realização deste trabalho?
Quando iniciei minha pesquisa, em 2003, a únicas traduções de que dispunha eram as compilações de Geir Campos --a de 1964 (não as "Folhas de Folhas de Relva", prefaciada pelo Leminski e mais conhecida do público) que por sorte encontrei em um sebo-- e de José Agostinho Baptista, que não conhecia e uma amiga me trouxera após uma viagem a Portugal.
Só no fim de 2005, quando estava perto de entregar meu trabalho, foram publicadas as edições de Rodrigo Garcia Lopes e Luciano Meira. Não pude absorvê-las em meu trabalho teórico. No entanto, ao retomar a tradução, era meu dever avaliá-las, tê-las em conta para o que quer que fizesse.
Por razões que me escapam, a atividade tradutória no Brasil, sobretudo de poesia, se viu investida de uma excelência criativa descabida, e seu verniz não raro escondia uma postura predatória; para mim, mencioná-los era uma forma de, em primeiro lugar, esclarecer meu débito a esses tradutores --a suas soluções tradutórias, às suas pesquisas, a seu talento e a tantas outras coisas que me escapam-- e, de quebra, esvaziar o que sentia como uma cultura competitiva insuportável.
A tradução participa do trabalho crítico: parti dela para elaborar meu estudo de mestrado; e, em sentido inverso, a ele retornei quando me vi diante de estabelecer um Whitman em português.
Sem esse trabalho de pesquisa, não teria como avaliar o que considerei os ganhos e as perdas das demais versões, os pontos em que poderia segui-los e os pontos em que deveria fazer diferente; ao mesmo tempo a pesquisa impõe alguma objetividade ao trabalho criativo do tradutor, instaura sua liberdade.
Não considero que minha tradução exclua as demais. Todos nos voltamos ao mesmo autor.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade