O que Trump realmente sabe sobre os acordos entre Estados Unidos e China?
Se há uma coisa sobre a qual Donald Trump parece ter certeza, de que os EUA estão saindo prejudicados em sua relação com a China.
Para pessoas que estudam o relacionamento econômico dos dois países, o relato que Trump faz de suas disfunções contém tanto queixas legítimas e fundamentadas quanto representações totalmente equivocadas de como funcionam as coisas entre a maior e a segunda maior economia do mundo.
"Eles estão acabando conosco", Trump já disse em muitos debates, comícios e participações na televisão. Ele ameaçou impor uma tarifa de 45% aos produtos importados da China "se eles [os chineses] não se comportarem corretamente".
Se as declarações de Trump forem interpretadas literalmente, como presidente ele tentará renegociar um conjunto complexo de relações que tirou centenas de milhões de chineses da miséria, disponibilizou uma grande gama de produtos aos consumidores americanos a preços mais acessíveis e contribuiu para o declínio do setor manufatureiro dos EUA.
A seguir, os argumentos de Trump são confrontados com a realidade (o exercício também é uma maneira de entender o relacionamento econômico entre os dois países).
Rhona Wise/AFP | ||
O pré-candidato republicano Donald Trump durante entrevista na Florida após prévias no Estado |
O DÉFICIT COMERCIAL
Trump: "Temos uma relação comercial muito injusta com a China. Este ano teremos um déficit comercial de US$ 505 bilhões com a China."
O déficit comercial dos EUA com a China foi de US$ 338 bilhões no ano passado, e não há razão para pensar que ele aumentará tanto quanto Trump sugere em 2016 –mas o que são US$ 167 bilhões entre parceiros comerciais codependentes? (Trump parece estar confundindo o número relativo à China com o déficit comercial americano total de 2014, US$505 bilhões).
A questão central –que os EUA importam da China muito mais do que exportam para ela– está correta. Para expressar o problema em outros termos, entre 1999 e 2015 as importações anuais da China cresceram em US$ 416 bilhões. No mesmo período, as exportações dos EUA para a China aumentaram em US$ 145 bilhões.
Dito isto, muitos economistas argumentariam que uma balança comercial não deve ser vista como um simples cartão de pontos em que o país que apresenta déficit comercial é o perdedor e o país que tem o superávit comercial é o vencedor.
Assim, a questão não é se há um déficit comercial grande e persistente entre os EUA e a China, mas a razão dele. E isso nos conduz a outro lado do argumento de Trump –um dos mais fortes.
Chris Keane/Reuters | ||
O pré-candidato republicano Donald Trump durante entrevista em Hickory, na Carolina do Norte |
O ACESSO AO MERCADO CHINÊS
Trump: "Tenho muitos amigos que são grandes manufatureiros e querem vender para a China. Não podem. A China não deixa."
Não é que as multinacionais americanas –indústria pesada, tecnologia ou finanças– não possam fazer negócios na China. O que ocorre, em vez disso, é que seus executivos se queixam das restrições impostas pelo governo chinês, que veem como sendo arbitrárias, imprevisíveis e altamente favoráveis às empresas nacionais –tanto assim que, na prática, ou elas têm seu acesso à China barrado ou não conseguem ganhar dinheiro no país.
Para fazer negócios na China normalmente é preciso formar uma parceria com uma firma chinesa, e isso muitas vezes implica em compartilhar propriedade intelectual crucial que dará à firma parceira a oportunidade de tornar-se competidora, futuramente. As regras podem mudar de modo aleatório, especialmente as que se aplicam a empresas americanas e europeias, fazendo grandes investimentos perder valor.
MANIPULAÇÃO DA MOEDA?
Trump: "A China é a maior manipuladora de moeda que já existiu no planeta."
A queixa de Trump sobre a desvalorização chinesa de sua moeda tem uma tradição longa e bipartidária. E está desatualizada.
É verdade que a China intervém em mercados de divisas para influenciar o preço de sua moeda, o renminbi, em relação ao dólar. E é verdade que uma década atrás tanto governo americano quanto economistas independentes tendiam a pensar que as intervenções serviam para empurrar o valor da moeda para baixo, em um esforço proposital do governo chinês de elevar a competitividade de suas exportações.
Mas muita coisa mudou nos últimos dez anos. Entre aproximadamente 2006 e 2015 foi permitida uma alta acentuada do renminbi, que hoje vale 23% mais que uma década atrás.
E, desde o verão passado, a China deixou sua moeda cair um pouco, mas isso parece ser um exemplo não de manipulação, mas de deixar o valor da moeda cair para mais perto daquele que reflete a situação atual da China, dado o desaquecimento de sua economia. O Fundo Monetário Internacional argumentou que o renminbi, também conhecido como yuan, não está mais subvalorizado.
"Pelo menos em 2006, 2007 ou 2008, o yuan estava subvalorizado. Agora, provavelmente não está", disse Derek Scissors, acadêmico do American Enterprise Institute e economista chefe do serviço de informação China Beige Book.
De fato, o governo chinês vem tentando impedir o êxodo de capitais do país, para impedir uma queda adicional do renminbi. Parece que o governo chinês e Trump estão do mesmo lado, pelo menos por enquanto.
Rhona Wise/AFP | ||
O pré-candidato republicano Donald Trump durante entrevista na Florida após prévias no Estado |
DECLÍNIO DO SETOR MANUFATUREIRO
Trump: "O que vai acontecer se eles não se comportarem bem: vamos impor uma tarifa de algum valor, que pode ser um valor alto, e vamos começar a construir essas fábricas e usinas. Em vez de na China, vamos construí-las aqui."
O argumento mais amplo de Trump é que uma geração de relações econômicas injustas com a China (e também com o México, Japão e outros países) é a causa primordial dos problemas enfrentados pelos trabalhadores americanos.
Os economistas centristas concordam mais com essa visão do que concordavam alguns anos atrás. A teoria comercial tradicional reza que os perdedores do comércio global –operários de fábrica que perdem seus empregos quando a fábrica é transferida para outro país– são mais que compensados por outras oportunidades geradas por uma economia mais eficiente.
Novos estudos sugerem que os efeitos negativos da globalização em certas áreas geográficas podem ser mais duradouros. Um estudo constatou que as importações da China entre 1999 e 2011 custaram até 2,4 milhões de empregos americanos.
Assim, é fácil culpar excessivamente a queda do emprego no setor manufatureiro à China ou ao comércio de modo mais amplo. Centenas de milhões de trabalhadores em todo o mundo –muitos dos quais viviam em condições de pobreza aguda uma geração atrás– integraram-se à economia mundial. Há muita concorrência, toda no curto prazo, por operários de fábrica nos EUA.
Ao mesmo tempo, a tecnologia fabril avançou de modo que uma empresa pode produzir mais com menos operários. O número de trabalhadores manufatureiros nos EUA vem caindo quase continuamente desde 1943 como parcela de todos os empregos, e o número total de empregos no setor manufatureiro chegou ao auge em 1979. O comércio da China com os EUA só decolou realmente a partir da década de 1990.
Em outras palavras, o comércio vem sendo uma força econômica importante nas últimas décadas, e o aprofundamento dos laços dos EUA com a China é um dos avanços mais importantes da última geração na economia global. Mas enxergar a China como a única força que afeta os altos e baixos dos trabalhadores americanos é um equívoco.
Tradução de CLARA ALLAIN
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