Decisões da Suprema Corte afetam dia a dia da população dos EUA

NANCY BENAC
DA ASSOCIATED PRESS, EM WASHINGTON

O ritmo da vida cotidiana dos americanos comuns parece muito distante do rarefeito mundo da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Mas do momento em que as pessoas saem da cama pela manhã à hora em que se recolhem à noite, as decisões do tribunal influenciam suas vidas, tanto de modo trivial quanto com relação a questões sérias.

Por isso, elas precisam ficar atentas ao Congresso, que está se preparando para debater a indicação do juiz Neil Gorsuch ao mais alto tribunal norte-americano. A influência dos nove juízes da Suprema Corte é difícil de superestimar –mesmo que o juiz Stephen Breyer tenha ressaltado que os nomes deles são menos conhecidos que os dos Três Patetas.

"Do ar que você respira à água que bebe, do teto que o protege à pessoa com quem você divide a cama –em tudo isso você encontrará a influência da Suprema Corte", diz Elizabeth Wydra, presidente do Centro pela Responsabilidade Constitucional.

Abaixo, alguns aspectos da vida cotidiana dos Estados Unidos nos quais a influência da Suprema Corte é visível:

CONVERSAR NA CAMA

Tudo começa quando o despertador toca, e o cidadão comum dos Estados Unidos abre os olhos e contempla sua mulher ou marido dormindo ao seu lado.

Ao longo das décadas, a Suprema Corte exerceu muita influência sobre o casamento, e ajudou a definir quem pode se casar com quem. Em 1967, no caso Loving vs. Virgínia, os juízes decidiram que leis que proibiam casamentos entre pessoas de raças diferentes violavam a constituição.

E a decisão desse processo ajudou a preparar o terreno para a decisão do caso Obergefell vs. Hodges, em 2015, que validou o direito ao casamento homossexual em todo o território dos Estados Unidos.

ESCOVAR OS DENTES

Se um cidadão norte-americano está acostumado a um gargarejo matinal, faria bem em lembrar que a água que ele usa para isso já foi causa de numerosos processos sobre a Lei da Água Limpa julgados pela Suprema Corte, em um esforço continuado por resolver dúvidas sobre que vias aquáticas contam com a proteção da lei, e se ela deve ou não abarcar riachos que alimentam reservatórios de água potável.

A questão continua viva: o presidente Donald Trump está trabalhando para reverter a tentativa do presidente Barack Obama de oferecer proteção a maior número de vias aquáticas, sob a Lei da Água Limpa; novos processos judiciais quanto a isso estão a caminho.

UVAS PASSAS DA CALIFÓRNIA

Se a pessoa está acostumada a comer um prato de cereais com uvas passas no café da manhã...

Sim, a Suprema Corte também lida com uvas passas. Elas ocuparam posição central em uma disputa sobre direitos de propriedade encerrada em 2015 com a decisão da corte sobre o caso Horne vs. Departamento da Agricultura, que estipulou que agricultores não têm a obrigação de participar de um programa da era da Depressão que autorizava o governo a confiscar parte de suas safras para manter os preços estáveis.

CHEERLEADERS E CAMAREIROS

É hora de ir para o trabalho e para a escola. A composição do corpo discente das escola norte-americanas está vinculada à histórica decisão do caso Brown vs. Conselho de Educação, em 1954, que declarou inconstitucional, por unanimidade, a existência de escolas separadas para alunos brancos e alunos negros, um dos momentos decisivos na história do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.

Nos últimos anos, a Suprema Corte decidiu diversos casos sobre como garantir que estudantes deficientes recebam "uma educação pública gratuita e apropriada", nos termos da Lei sobre Pessoas Portadoras de Deficiências. Isso ajudou a definir as regras dos programas que flexibilizam a escolha de escolas por pais de estudantes.

E quanto às cheerleaders que animam a torcida durante os jogos de futebol americano das escolas de segundo grau? Até nisso a Suprema Corte interfere. No ano passado, o tribunal aceitou um caso de disputa de marca registrada envolvendo uniformes de cheerleaders, e debateu listras, estampas e divisas, e sobre o que faz com que uma cheerleader pareça mais esbelta ou mais curvilínea. A decisão do caso Star Athletica vs. Varsity Brands deve sair nos próximos meses, e as implicações para a indústria da moda serão importantes.

No trabalho, a constitucionalidade de leis de salário mínimo e de regulamentos de saúde e segurança remonta a decisões tomadas pela Suprema Corte na era do New Deal (1933-1945). Foi um caso de 1937, West Coast Hotel vs. Parrish, envolvendo a camareira de hotel Elsie Parrish, que abriu caminho para a decisão do tribunal no sentido de que a lei de "salário mínimo para mulheres" adotada pelo Estado de Washington era constitucional. Decisões posteriores da Suprema Corte reforçaram a proteção contra discriminação racial e assédio sexual nos locais de trabalho.

Um tópico que continua quente é determinar se sindicatos que representam funcionários do governo têm direito a recolher contribuições de trabalhadores que tenham optado por não aderir a eles. O tribunal se dividiu, por quatro votos a quatro, ao julgar o caso Friedrichs vs. Associação dos Professores da Califórnia, e o empate sustentou a cobrança de contribuições dos não membros. A expectativa é de que a questão volte à agenda da corte assim que a vaga aberta pela morte do juiz Antonin Scalia seja preenchida.

HORÁRIO NOBRE

Depois do trabalho, muitos norte-americanos gostam de relaxar assistindo TV. A maneira pela qual eles assistem, e os programas a que assistem, podem ser influenciados pelo tribunal.

Por exemplo, uma decisão da Suprema Corte em 2014 no caso ABC vs. Aereo proibiu a operação de uma empresa que permitia, por US$ 8 (R$ 25) ao mês, que pessoas assistissem online e gravassem –em tablets, celulares e outros aparelhos– programas exibidos pelas redes de TV aberta dos Estados Unidos. O tribunal decidiu que a empresa havia violado as leis de direitos autorais ao não pagar pelo sinal de TV aberta que redistribuía. A Aereo logo fechou as portas.

Quanto ao que os norte-americanos veem em suas TVs, ao menos durante a temporada de campanha eleitoral, a Suprema Corte merece agradecimentos –ou críticas– pela explosão na propaganda política divulgada por organizações não vinculadas a campanhas, porque, ao decidir o caso Citizens United vs. FEC, em 2010, revogou porções de uma lei promulgada há 63 anos que proibia empresas e sindicatos de veicular propaganda pró ou contra candidatos políticos.

LAR DOCE LAR

Quando enfim chega a hora de dormir, os americanos precisam levar em conta que a casa em que vivem, e seu valor de mercado pode ser afetado por decisões da Suprema Corte. O tribunal é solicitado frequentemente a interpretar a Lei da Igualdade na Habitação, uma medida de combate à discriminação.

Neste ano, ele considerará os casos Bank of America vs. Miami e Wells Fargo vs. Miami, nos quais bancos contestam o direito da prefeitura de Miami de processá-los por práticas financeiras predatórias que resultaram em execução de hipotecas e consequente queda nos valores dos imóveis e dos impostos imobiliários.

Além disso, o direito dos norte-americanos às casas de que são donos também pode depender da Suprema Corte. No caso Kelo vs. New London, em 2005, o tribunal decidiu que governos municipais podem desapropriar moradias particulares para abrir espaço para shopping centers e outros projetos imobiliários privados.

A Suprema Corte deu aos governos locais amplos poderes para desapropriar imóveis, com o objetivo de elevar a arrecadação tributária. Mas mais de 40 Estados norte-americanos tomaram medidas, depois dessa decisão, para reformar suas leis de domínio eminente a fim de proteger o direito de propriedade.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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