Contra austeridade, Arábia Saudita cria 'ministério para a diversão'

ROULA KHALAF
DO "FINANCIAL TIMES"

Uma novidade na Arábia Saudita: diversão. Os cidadãos devem ter mais disso –pelo menos é o que foi decretado pelo regime.

Nem todos os cidadãos, é claro, e não qualquer tipo de diversão. Os homens podem se divertir muito mais que as mulheres, e nenhuma das proibições –contra álcool, jogo e convívio social de homens e mulheres– desapareceu, nem é provável que desapareça.

O entretenimento talvez não seja a maior prioridade para os cidadãos da monarquia absolutista. Mas num momento em que a queda do preço do petróleo obrigou a população –habituada a benefícios do nascimento à morte– a experimentar a dor da austeridade, o governo quer atenuar o golpe com um sopro de lazer.

Isso faz parte do raciocínio que levou à criação de uma Comissão de Entretenimento, lançada neste ano e que apresenta os sauditas ao prazer até agora proibido dos espetáculos ao vivo.

A temível polícia religiosa Mutawaa também recebeu instruções para refrear seu zelo. Assim, em vez de invadir uma propriedade onde eles suspeitam que haja um ato de "desvio", no seu entender, agora devem relatá-lo.

"Queremos transformar a Arábia Saudita em um lugar mais brando e agradável de se viver, uma vida mais suave para os cidadãos", disse no início deste ano o ministro do Petróleo, Khalid al-Falih.

Uma pessoa envolvida na promoção de eventos de lazer me disse que o governo está pensando em abrir cinemas. Ainda mais incrível é a notícia de um espetáculo do Cirque du Soleil, embora possa acabar sendo uma apresentação só para homens.

Há planos mais ambiciosos em vista. O Fundo de Investimento Público, o fundo soberano saudita, planeja desenvolver uma cidade de entretenimento ao sul de Riad, a capital. Ela deverá ser do tamanho de Las Vegas (mas sem a permissividade), com um parque de diversões Six Flags e um safári.

O fato de a família real saudita finalmente ter decidido dar algum prazer à população, cuja maioria tem menos de 25 anos, é, pelos padrões sauditas, uma minirrevolução.

Ela exige uma dança delicada com o puritano establishment religioso wahabita, que sustenta a legitimidade da família real e portanto não pode ser totalmente ignorado. Mas corrige um absurdo social.

Enquanto música, cinema e shows são proibidos, as famílias sauditas se fartam de TV via satélite e as crianças encontram escapatória na internet –a Arábia Saudita tem o maior índice de audiência de TV online no Oriente Médio.

Nos fins de semana, muitas famílias fazem as malas e levam seus petrodólares para uma temporada de gastança do outro lado da fronteira, geralmente em Bahrein ou Dubai. Outro objetivo por trás de uma indústria de lazer doméstica é captar parte desses gastos no próprio país.

Na direção de tudo isso está Mohammed bin Salman, 31, o vice-príncipe real e filho favorito do rei. Para transformar a economia saudita, ele cortou subsídios e os benefícios do setor público.

Desenvolver um setor de lazer, segundo autoridades, criará empregos e atrairá investimento estrangeiro. É também uma útil distração das dificuldades econômicas e ajuda a dourar a imagem do príncipe como defensor da juventude.

Até agora, quatro shows com ingressos esgotados foram realizados em cidades sauditas, incluindo uma apresentação lotada em Jidda, no mar Vermelho, de Mohamed Abdo, um cantor saudita amado pelo público árabe.

Antes, os sauditas tinham de viajar ao exterior para apreciar um show ao vivo de seu próprio astro. Como todo o progresso na Arábia Saudita, porém, foi um meio passo: Abdo cantou para um público totalmente masculino.

Um evento mais liberal –Comic Con, um festival de três dias de super-heróis e videogames– também foi realizado em Jidda em fevereiro. As mulheres deviam ficar separadas dos homens, mas acabaram se misturando, e algumas delas dançando, no mesmo salão.

Os religiosos não gostaram, mas em geral limitaram seus protestos no Twitter –praticamente o único espaço onde os sauditas podem manifestar suas opiniões com liberdade e onde alguns clérigos têm um público enorme.

Os sauditas que viram os vizinhos Dubai, Abu Dabi e Catar criarem setores de lazer a partir do zero há muito afirmam que afrouxar as restrições em casa era menos arriscado do que o regime alegava.

As autoridades aparentemente concordam hoje. Amr al-Madani, o chefe da comissão de entretenimento, disse à televisão al-Arabiya que o objetivo é oferecer pelo menos três opções de entretenimento no fim de semana aos sauditas em suas cidades –o volume padrão na maior parte do mundo, mas uma novidade nesse reino austero.

Traduzido por LUIZ ROBERTO MENDES GONGALVES

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