ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
DE SÃO PAULO

Botão nuclear e Olimpíada de Inverno foram manchete no discurso de Ano Novo de Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte, mas da fronteira para dentro a estrela foi Mallima, cavalo mítico capaz de galopar 4.000 km por dia.

Citada cinco vezes no pronunciamento, a "velocidade de Mallima" resume o espírito das diretrizes norte-coreanas para a economia -tema de mais de um terço das 4.658 palavras do texto.

A ordem é acelerar a recuperação em 2018, depois de "apertar os cintos durante muitos anos" para garantir o programa nuclear. No texto, Kim dá essa etapa por superada e diz que a "tarefa fundamental é elevar o padrão de vida da população".

Estimar o status econômico dos norte-coreanos é tarefa difícil mesmo para pesquisadores e consultorias especializadas no país.

A Coreia do Norte não publica estatísticas, e as análises se baseiam em inferências a partir de parceiros comerciais e imagens de satélite das cidades e das áreas rurais.

Uma das principais fontes de informação é o Banco Central da Coreia do Sul, que calculou para o vizinho um PIB de US$ 36 bilhões em 2016, com alta de 3,9% sobre 2015.

A estimativa é que o aquecimento continuou em 2017, mesmo com os embargos provocados pela manutenção do programa nuclear no país.

Analistas como o historiador russo Andrei Lankov atribuem a alta a um programa de reformas implantado por Kim desde sua posse, em 2012, para reduzir a ineficiência da economia centralizada.

As medidas, que dão mais autonomia aos gestores de empresas estatais e mais receitas aos agricultores, foram ampliadas em 2016.

Não há confirmação (nem desmentido) oficial, mas, segundo Lankov —que estudou na Universidade Kim Il-sung, em Pyongyang, dirige o Korea Risk Group e é um dos principais analistas do país—, a fatia dos agricultores na colheita dobrou de 30% para 60%, e os administradores das empresas estatais terão autonomia para comprar insumos, vender produtos, contratar, demitir e recompensar empregados.

Kim também tem patrocinado um incentivo gradual e controlado do empreendimento privado, diz Lankov.

Nascida espontaneamente durante a grande crise dos anos 1990 e liderada por mulheres, a atividade privada tem hoje uma dupla importância para manter a ditadura norte-coreana: permite o aumento da renda das famílias e é fonte de arrecadação para o governo.

O historiador, porém, prevê que a reforma econômica não será acompanhada de relaxamento do controle social, e um dos principais motivos é o medo de desdobramentos como a queda do muro na Alemanha, em 1989.

Lankov ressalta que a disparidade de renda entre as Coreias é muito maior que a dos alemães de 30 anos atrás. Alemães ocidentais ganhavam o triplo dos orientais; sul-coreanos ganham de 14 a 40 vezes mais que os vizinhos do norte, conforme a fonte e o método usado para a estimativa.

Embora a desnutrição tenha ficado no passado, a população norte-coreana ainda é pobre. O PIB per capita da Coreia do Norte é estimado em torno de US$ 1.700 em paridade poder de compra (que permite comparar nações), ou 11% do brasileiro.

O país asiático não é ranqueado pelo Banco Mundial, mas o valor o colocaria perto do 13º mais baixo, Gâmbia, com US$ 1.680 por pessoa.

METAS OFICIAIS

No discurso de Ano Novo, Kim Jong Un pediu mais esforços nas áreas de energia e indústria pesada, mas afirmou que o essencial é fornecer mais bens de consumo, "cumprir sem falta o plano de produção de cereais" e melhorar pesca e aquicultura.

Premido pelo embargo econômico, o regime enfatizou a ciência e a tecnologia como forma de driblar a dependência externa. As metas são selecionar variedades mais produtivas para cultivo de alto rendimento e melhorar a eficiência de máquinas para aumentar a produção de grãos, animais, frutas e cogumelos.

Sem citar números, o jornal coreano "DPRK Today" elenca vários avanços tecnológicos de 2017, entre eles o desenvolvimento de linhagens de peixes de alta produtividade e o desenvolvimento de árvores frutíferas por cultura genética.

Na áera industrial, o veículo cita a criação de uma válvula que estabiliza a produção de energia termoelétrica, um sistema de automação de mineração, novos produtos de TI, máquinas de corte a hidrogênio, instalações de geração de energia pela força das marés e uso de cimento resistente a calor em termoelétricas, entre outros.

Em sequência ao discurso de Ano Novo, o jornal "Pyongyang Times" tem publicado diariamente notas sobre superação de metas. Segundo o noticiário, por exemplo, "o complexo de ferro e aço de Hwanghae bateu 140% de sua meta, a termelétrica de Pyongyang forneceu 120% da média de energia e a fábrica de seda Kim Jong-suk mais que dobrou sua produção".

MULHERES À FRENTE

As reformas liberalizantes da Coreia do Norte são diferentes das de países como China e Vietnã em pelo menos dois aspectos: foram iniciadas pela população e se mantêm num estado de semi-privatização, em simbiose com o modelo estatal.

A grande depressão dos anos 1990 arruinou a economia centralizada e encerrou a distribuição de alimentos à população, que vigorava desde 1957. Para sobreviver, os norte-coreanos recorreram à atividade privada.

Como os homens fisicamente aptos eram empregados do Estado, foram as mulheres que passaram a vender o que tinham em casa e, em seguida, a produzir bens.

Hoje, estima-se que 75% dos comerciantes são mulheres, e que a economia informal responda por 78% da renda das famílias, segundo o historiador Andrei Lankov.

Os mercados começaram a surgir de forma anárquica nas cidades a partir de 1995, segundo a pesquisadora Joung Eun-lee, da universidade sul-coreana Gyeongsang.

Famílias com parentes na China contrabandeavam produtos ou recebiam recursos para investir. Agricultores plantavam nas montanhas, em áreas clandestinas, mas toleradas pelo regime.

No final dos anos 1990, os comerciantes mais bem-sucedidos passaram para o atacado; nos anos 2000, alguns acumulavam somas suficientes para investir em outros ramos, como restaurantes, armazéns e companhias de transporte, de acordo com analistas do país.

Estudo feito em 2009 aponta que metade dos restaurantes e das lojas eram privados. Parte do lucro é repassado ao governo e entra nas contas como renda do setor público.

Apareceram casas de cambio que também prestavam servidos financeiros, como empréstimos. Pequenas empresas empresas com cerca de 12 empregados passaram a produzir itens como cigarros, roupas ou sapatos.

Segundo Joung, os novos mercados eram fonte de renda importante para o governo e por isso foram tolerados. Setores considerados não vitais para o regime foram deixado a cargo da iniciativa privada, segundo o analista Yang Mun-su, autor de um livro sobre o assunto.

O surgimento dos "novos ricos" incentivou tutores particulares e professores de inglês, música e matemática.

O governo não reconhece a existência do setor privado nem apoia notícias sobre ele, mas observadores consideram que Kim Jong-un pretende manter a estratégia de estímulo controlado.

Um dos sinais desse apoio, segundo eles, é a nomeação para primeiro-ministro de Pak Pong-ju, um dos principais formuladores da reforma de 2002, que deu mais autonomia às estatais.

CRONOLOGIA ECONÔMICA

1945
Ao final da Segunda Guerra Mundial, a península Coreana é dividida em zonas de controle soviético, ao norte do paralelo 38, e americano, ao sul; em 9/9/1948, é proclamada a República Popular Democrática da Coreia, sob comando de Kim Il-sung

De 1946 a 1950
Governo faz reforma agrária, cria cooperativas agrícolas e nacionaliza indústrias

final dos anos 1950
China e URSS se desentendem, e Kim recebe incentivos dos dois países para se manter neutro; país experimenta crescimento econômico e, em 1957, passa a fornecer alimentos a toda a população

anos 1960
Produção industrial e renda per capita são maiores no norte que no sul

anos 1970
País importa equipamentos para melhorar tecnologia, mas choque do petróleo eleva custos e recessão global derruba preços das exportações. Crise leva a calote de dívida de US$ 2 bilhões; investimentos e empréstimos secam

anos 1980
Economia planejada começa a dar sinais de estagnação

início dos anos 1990
União Soviética entra em colapso e russos cortam ajuda. Morre Kim Il-sung, assume seu filho Kim Jong-Il

1994-1996
Falta de energia para irrigação e de fertilizantes, enchentes e seca dizimam agricultura. PIB encolhe 35% de 1990 a 1998 e distribuição de alimentos é restrita

1996-1999
Fome se alastra e provoca cerca de 500 mil mortes ao longo dos anos 1990

anos 2000
Cresce economia informal; Kim Jong-il eleva autonomia de executivos de estatais, mas tenta sem sucesso conter atividade privada; surgem "novos ricos"

anos 2010
Kim Jong-un implanta medidas para elevar produtividade; governo patrocina abertura controlada da atividade privada

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