'A gente quer odiar a religião, ela merece', diz chefe de grupo de ateus

Crédito: Adriano Vizoni/Folhapress
Daniel Sottomaior, fundador da Atea, em sua casa, na zona sul de São Paulo

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
DE SÃO PAULO

Cadê seu Deus agora?

Em lugar nenhum –a trabalheira é convencer os 98% da população que dizem acreditar na ideia do Criador, segundo pesquisa Datafolha de setembro, e assegurar "a verdadeira laicidade do Estado".

Eis as bandeiras da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), que representa um de cada dez brasileiros, somando ateus (1%) e quem se declara sem religião ou agnóstico (8%). Em nome dessas causas, o grupo ajuizou dezenas de ações civis públicas contra o que considera serem atentados ao princípio de um Estado imune à interferência religiosa.

A maioria desses processos questiona iniciativas evangélicas respaldadas pelo poder público. Caso, por exemplo, de uma ação contra o prefeito Marcelo Crivella e a cidade que gere, o Rio, "pela realização de eventos religiosos nas escolas da rede municipal". Há outra contrária à instalação de um templo evangélico na sede do Bope, tropa de elite da PM-RJ.

A investida judicial se estende a outros credos, como o católico ("doação de um terreno para imagens em Aparecida-SP") e a umbanda ("construção de monumento à Iemanjá em Cidreira-RS").

Mas a Atea também está na outra ponta da espada –como alvo do Ministério Público paulista, que já pediu a instauração de inquérito policial por postagens no Facebook da associação consideradas ofensivas e que poderiam incorrer na "prática de crime de ultraje a culto". Em outras palavras: intolerância religiosa.

É isso mesmo, admite o presidente da Atea, o engenheiro Daniel Sottomaior, 46. "A gente quer odiar a religião, ela merece. Querem nos culpar por memes religiosos? Pois nos declaramos culpados desde já."

Publicação recente traz a reportagem de um museu em Amsterdã com "a maior coleção de deformidades humanas" (fetos com deficiências guardados em jarros). A legenda: "OBRIGADO, SENHOR!!!".

Dois posts em particular provocaram ira ao pegar carona em momentos de comoção global para questionar a fé de bilhões. Ante a foto de um menino sírio de 3 anos de rosto enterrado na areia, após se afogar tentando chegar à Grécia, a Atea fustigou: "Se Deus existisse, seria um canalha."

Dois dias após a tragédia aérea com a Chapecoense, nova provocação: uma foto do time rezando em campo e outra do avião destroçado, mais a legenda "pode confiar, amiguinho, Deus é fiel".

A Atea se desculpou depois "por não ter mostrado mais claramente como a religião se aproveita de momentos de dor como este para impedir o pensamento racional".

À Folha Sottomaior lança uma metáfora para explicar sua birra com a "ficção divina". "Digamos que um belo dia alguém evoque o Supremo Enxugador de Gelo, um ser incorpóreo. O movimento dá crias, começam as desavenças entre os grupos, o enriquecimento com enxugamento de gelo alheio, a ideia de que quem não enxugar gelo é mau. E, no fim, enxugar gelo não vai ajudar ninguém."

Pior que tamanha "negação do pensamento crítico" se entranha em totens da democracia, afirma Sottomaior. Vide o lema "em Deus confiamos", presente nas notas de dólar americano, e a Constituição brasileira, promulgada "sob a proteção de Deus", como consta em seu preâmbulo.

"Poucas pessoas se dão conta", mas o texto constitucional valida "o dízimo obrigatório ao estabelecer que igrejas e templos de qualquer culto têm imunidade tributária", segundo a Atea. Em miúdos: "É como se o governo concedesse um subsídio às entidades religiosas no valor integral dos impostos devidos ao fisco. [...] Esse dinheiro, claro, sai do seu bolso".

Sottomaior prega o ódio contra religiões e acha que isso não é sinônimo de intolerância contra seus adeptos ("ideias não têm direito, pessoas sim"). Ao mesmo tempo, critica o que julga ser preconceito contra os descrentes.

INTOLERÂNCIA

Exemplos não faltam. O estudante paraense Jhonatas, 18, prefere omitir o sobrenome para não se indispor ainda mais com a família –que por pouco não o expulsou de casa por ser ateu. "Assistimos a uma reportagem sobre o terror do Estado Islâmico. Disse: 'Fazem isso em nome de um deus que nem existe'. Para eles era fase, eu tomaria jeito. Mas perceberam que eu não ia mudar e começaram a falar que quem não tem Deus no coração não ama ninguém".

E tem os políticos que puseram tudo a perder por sugerirem um ateísmo. Caso clássico é o de FHC, que em 1985 perdeu a eleição para prefeito de São Paulo ao titubear quando lhe perguntaram num debate se acreditava em Deus.

Dilma foi outra que oscilou quando questionaram sua crença num ser supremo. "Eu me equilibro nessa questão. Será que há? Será que não há?", disse em 2008, ainda ministra, em sabatina da Folha.

Já presidenciável, em 2010, mudou de postura: dizia-se então crente "numa força superior" e frisava ser católica e ter estudado em colégio de freira. "Depois de Fernando Henrique, todo mundo aprendeu a lição", diz Sottomaior.

O Datafolha detectou que um candidato ateu ao Planalto seria rejeitado por 52% da população, contra 16% e 24% que não elegeriam "de jeito nenhum" um católico e um evangélico, respectivamente.

Para o deputado Hidekazu Takayama, líder da bancada evangélica na Câmara, a Atea peca num ponto: "O Estado é laico e tem que continuar assim. Mas eles, os ateus, têm que entender que o povo daqui é 85% cristão. A democracia é clara. A maioria vence".

O babalorixá Diego de Aira, do Movimento Nacional Brasil contra a Intolerância Religiosa, diz defender tanto o direito "de se ter uma religião ou de não se ter". "Porém, para comunidades de matriz africana, o samba, o acarajé, o atabaque, o ojá [pano de cabeça] não são apenas nossa religião, é a tradição de um povo que resiste no Brasil."

"É preciso ter presente que o Estado é laico, mas a cultura brasileira é marcada pela religiosidade. O próprio Estado deve garantir a liberdade de expressão religiosa, não somente privada, mas também pública", diz dom Sergio da Rocha, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). "Quem combate as manifestações religiosas não contribui para a construção de uma democracia madura."

Para Sottomaior, haverá sempre uma boia de salvação na América Latina: o Uruguai, onde 4 a cada 10 habitantes dizem não ter religião e os prédios públicos não exibem imagens religiosas. Definitivamente não graças a Deus.

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