Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).
Ninguém quem?
Brasileiro detesta crítica. Mas adora criticar. Desde que voltei ao Brasil, percebo que todos reclamam. Uns da violência, outros da corrupção, outros ainda da vida. A insatisfação está no ar. De repente, parece que reclamar substituiu o futebol como esporte nacional.
As queixas –sobre aspectos grotescos de desmandos de autoridades ou desequilíbrios sociais– às vezes vêm seguidas da seguinte exclamação indignada: "E ninguém faz nada!".
Enquanto meus interlocutores me olham com cara de raiva e conformismo, eu, em silêncio, me pergunto: ninguém quem?
Deduzo que "ninguém" sejam as autoridades constituídas, mas as referências são tão genéricas que perdem objetividade.
O "ninguém" a que se referem –o que não faz nada contra os desmandos e desequilíbrios do país–, parece uma entidade abstrata, que, em algum momento, teria assumido a obrigação de cuidar do nosso país com zelo e esmero, como se fosse seu.
Sabe a diarista que deixa a casa limpa, passa a roupa e tira o lixo, mas que a gente nunca encontra? É mais ou menos isso. Não importa como as coisas são feitas. A ideia é não ter trabalho, afinal é para isso que se paga o salário da diarista.
A mentalidade escravocrata habituou gerações de brasileiros a receber tudo nas mãos, de criados ou de políticos.
Uns nunca precisaram ir à cozinha pegar um copo d'água, outros aprenderam a nunca desobedecer. Nos dois casos, vê-se passividade. Mas passividade não desenvolve um país.
Não é só eleger e deixar solto. Tem de exigir o serviço e ficar em cima, porque, no nosso Brasil, é muito mais fácil encontrar uma diarista competente que políticos com espírito público, comprometidos com o interesse da nação.
Portanto, reclame, insista, encha o saco, escreva para o gabinete do deputado, queixe-se ao serviço de atendimento ao consumidor, poste no Facebook e no Instagram. Bote a boca no trombone. Vire um chato. Manifeste-se.
Isso dá trabalho, mas os filhos dos chatos viverão em um país melhor.
*
Ney Matogrosso se manifestou. Artistas são antenas da sociedade, são pagos para se expressar. É o trabalho dele. "Adoraria dizer que tudo está maravilhoso, que o povo está feliz, bem tratado, bonito e viçoso, mas não é assim."
Em suma, foi o que declarou em recente entrevista à televisão portuguesa. O tom crítico de suas declarações em relação ao Brasil causou indignação nas mídias sociais.
Foi chamado de reacionário, esclerosado e burguês.
Concorde-se ou não com seus pontos de vista, Ney Matogrosso é um dos artistas mais revolucionários da música brasileira.
Enfrentou o autoritarismo da ditadura militar com o corpo e com a voz. Ajudou a avançar o direito das minorias. Denegri-lo para desqualificar seu discurso é mal-intencionado. Ney Matogrosso é um grande brasileiro. Sua voz deve ser ouvida.
ALEXANDRE VIDAL PORTO é escritor e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor
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Comentários
Ver todos os comentários (7)celiavasconcelos
17/05/2014 19h59 Denunciarceliavasconcelos
17/05/2014 19h48 DenunciarNão é por ter enfrentado a ditadura que alguém tem direito de dizer besteiras. Dizer que pessoas tem filhos para ganhar bolsa família é de uma ignorância que embaça tudo o que Nei tenha dito a mais de sensato. Quando o articulista diz que é mais fácil encontrar uma diarista competente que políticos com espírito público, melhor substituir o termo político por cidadão. Políticos não pertencem a castas, são cidadãos eleitos pela SOCIEDADE.
minha opinião
17/05/2014 19h33 DenunciarPerfeito. Os ´problemas dos quais reclamamos, deveriam ser tratados pelo povo, com mais seriedade e coerência. Mas que fique claro, ao governo cabe a maior responsabilidade de dar ao povo EDUCAÇÃO, SAÚDE E MORADIA DECENTE. Se o senhor está chegando ao Brasil, deverá constatar o que digo. Se não, deveria sentir o mesmo que nós.
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Má intenção existe em utilizar o passado de Nei Matogrosso para justificar qualquer abobrinha que diga no presente.