É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
Escreve às quartas-feiras.
Deixemos as cores pra depois
Karime Xavier - 13.mai.2016/Folhapress | ||
Estava tão animada com o feriado pela frente e a oportunidade de ler, trabalhar, regar o jardim, achar os perdidos! Um livro me esperava, nada de cozinha, mas poderia render um caldo "Através do espelho da linguagem", cheio de mistérios de outras línguas. Será o mundo diferente conforme a língua? Muito assunto. Vamos ser mais específicos e nos concentrar nas cores. Como saber arrumar um prato harmoniosamente?
Percebi que temos olhos diferentes quando fui ver a exposição de Albert Eckhout sobre o Brasil. Pois nosso céu tinha um cinza de inverno europeu, que se sobrepunha aos maracujás, se juntava às bananas, às cumbucas, contaminava o que mais houvesse. Era com o sentimento que pintava.
Quantas vezes trocamos o nome das cores por hábito, por modo de dizer? Meu marido tinha um armário de ternos azul-marinho que ele classificava em azuis, verdes e cinzas. Nos meus livros de cozinha da adolescência me pediam para bater a maionese até cor de limão, o que nunca consegui ou jamais quis, e há pouco tempo percebi que usavam a cor do limão-siciliano. E tudo que deveria ficar dourado na frigideira sempre me pareceu escuro e marrom. E o suco de laranja das manhãs é amarelo e não alaranjado como pensamos, e o rosso (vermelho do ovo, para os italianos), para nós é amarelo.
Na verdade o que o autor queria nos ensinar eram as diferenças culturais —e por que a nossa língua não afeta o que pensamos do mundo. Ou afeta? O que seria a cultura? Trata a cultura como todos os aspectos de nosso comportamento que foram moldados pelas convenções sociais e que se transmitiram através da aprendizagem de geração em geração.
Vocês não imaginam como o mundo brigou pelas cores, pelo que não se via, pelas gradações de verde, suas aproximações com o azul.
O pior foi quando um homem de 41 anos, o futuro ministro Gladstone, meteu o bico nesse quiproquó. Era um leitor fanático da Odisseia e da Ilíada.
Suas segundas Bíblias. Leu, leu, criticou, escreveu muito e um dia deu a luz a três grossos tomos sobre o assunto. Homero e sua obra. E surpresa!
Homero via o mundo em preto e branco. E de vez em vez umas corzinhas mais. Mel verde? Licença poética? Homero seria cego? Não, não era. Mas gostava mesmo de branco e preto. Enxergava brilhos. Brilhos brancos e pretos. Não tinha azul nem cor-de-rosa. O mar era violeta assim como as ovelhas.
Contou as citações.
Preto - 170 vezes
Branco - 100 vezes
Vermelho - 13 vezes
Amarelo - 10 vezes
Violeta - 6 vezes
Pois é. Como nosso fim de semana atordoante de propinas. Esses homens têm cores? Classificações? Misturam-se em tons que os tornam um só? Cosí e se lui pare.
Deixemos para estudar a cor de nossos pratos e suas comidas quando tivermos noção da cor de nossa gente. Por enquanto esqueçamos de assunto tão supérfluo e prestemos mais atenção no prato daquele que ainda equilibra sobre ele o seu arroz com feijão.
Deixemos as cores pra depois.
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