Gritos de paz
De olho nos diferenciais do rúgbi, administrador insere o esporte da bola oval em escolas públicas
- Ei, o que você faz?
- Eu tenho uma ONG. Uma ONG de rúgbi.
- Rúgbi. Mas é um esporte tão violento.
- De jeito nenhum...
O diálogo iniciado em 2008, durante fórum para prefeitos, entre o administrador Eduardo Pacheco e Chaves e a professora da FGV Patrícia Tavares marcou um divisor de águas na vida da ONG Hurra!, criada há três anos por quatro amigos ligados ao rúgbi.
Não, não foi fácil para Eduardo, então com olho roxo e três arranhões herdados de um jogo na véspera, convencer a recém-conhecida e futura esposa de que a paixão da sua vida era "o" esporte da inclusão. Mas ele conseguiu! Tanto que Patrícia fez curso da modalidade e é hoje a coordenadora pedagógica da ONG.
Atrair pessoas para a Hurra! é natural em Eduardo, 41, porque, mesmo tendo chegado ao rúgbi de forma inusitada, convidado por amigos franceses, e de ter aceitado jogá-lo para mostrar à família que era capaz de fazer algo diferente e ousado, ele tem em mente que o esporte pode oferecer mais do que só o jogo.
"Sempre aprendi, em casa e com o meu avô paterno, que ajudou a formar o que é hoje o PMDB, que é preciso fazer algo para ajudar o Brasil."
Isso ficou mais claro após ter sido baleado duas vezes por dois jovens na saída de um caixa eletrônico. "Acertaram-me no braço e na barriga. Tive medo. Mas o preparo físico do rúgbi me ajudou. E eu ainda sentia que tinha algo a fazer na vida."
Esse episódio afetou a carreira de atleta (o tempo para se curar o deixou defasado) e deu contornos à face do empreendedor. "Não foi tão fácil, só sabia que tinha que evitar que outros meninos chegassem àquela situação."
Assim, deixou de lado o talento que tinha com vendas, especializou-se -fez MBA em empreendedorismo social na FIA- e garimpou por outras ONGs.
"Queria fazer algo, mas não sabia como. Só tinha o rúgbi e os amigos que fiz nele. Então, fundei com eles a Hurra! e levamos um ano e meio para construir o método educativo, hoje repassado a professores da rede pública, os quais acompanhamos de perto."
A metodologia começou em três CEUs de São Paulo. Fez tanto sucesso que bastaram seis meses para que chegasse a 17 unidades -o plano é alcançar os 45 CEUs. Isso significa que 350 crianças jogam o esporte da bola oval, de jeito lúdico -o Rúgbi TAG, em que não há contato corporal, evidente até no trato com Eduardo. "Quem é Eduardo? Não sei. Ah, aquele é o Gargamel!" é o que mais se ouve.
Sim, o apelido recebido aos 17 anos ainda identifica Eduardo. E o jeito como as crianças o cumprimentam também, em toques alegres de dedos e mãos. "A Hurra! é delas. Além de passar valores, como a ética, gosto de ser amigo delas, pois rúgbi não exclui, constrói amizades."
Ele se orgulha do que o esporte é capaz. Como numa manhã na periferia paulista, em duas quadras, com número igual de crianças, em que chamam a atenção meninas onde se jogava rúgbi e os palavrões onde era praticado o futebol. "No rúgbi, se você ou a torcida ofende alguém, o time é punido. E joga gordinho, menina, magrinho", diz Eduardo.
Enquanto a Hurra! cresce, ele tenta se conter e disseminar um trunfo. "Tenho que me policiar, senão ligam de todo canto e já vou dizendo que faço tudo pelo rúgbi e pelas crianças. Nunca liguei para dinheiro, e o que mais quero é trabalhar nosso Terceiro Tempo, uma terapia em grupo do rúgbi, onde árbitros, times e torcidas confraternizam juntos após o jogo. Na periferia, podemos usar isso para abordar a realidade das crianças. Mas estamos engatinhando, pois requer cuidado."
Por outro lado, Eduardo, que se diz mais focado após o nascimento da filha, já vislumbra parcerias até na África. "Afinal, se o rúgbi permite que se faça amigos pra sempre, por que fronteiras?"
Assista
Conheça mais sobre a Associação Hurra
A Hurra! desenvolve um método inovador de ensino do rúgbi com foco na replicação via professores de educação física. Tem atuação casada em duas frentes, tanto na replicação do rúgbi quanto no desenvolvimento de uma tecnologia pedagógica de esporte educacional, com aplicação dos princípios do jogo na própria vida.
A Hurra! criou um modelo de capacitação que possibilita multiplicar a modalidade, desconhecida no país. O investimento na cadeia produtiva do esporte tem como principal norteador a Olimpíada-2016, no Rio, e faz parte de um projeto de longo prazo em conjunto com a Federação Paulista de Rugby para sua disseminação em prol da descoberta de atletas potenciais, muitos dos quais fisicamente limitados para a prática de futebol (peso em excesso) ou vôlei e basquete (pouca altura).
Sua popularização reforçará a atratividade da ONG por parte de crianças e jovens, bem como de patrocinadores, gerando um ciclo de crescimento sustentável.
Todo esse movimento tem como direcionador a segunda frente, o esporte educacional, que inova ao reforçar o papel pedagógico da educação física.
A Hurra! não busca implantar o rúgbi pela experiência de especialistas do esporte comum na disseminação de novas modalidades. Utiliza seu conhecimento para formar professores de educação física como transformadores sociais, com o método da IRB (International Rugby Board), principal entidade desse esporte.
A equipe está focada em incentivar a busca pelo desenvolvimento por parte de cada multiplicador.
Dentre os diferenciais que lhe conferem qualidade a sua atuação constam:
- acompanhamento corpo a corpo de todo o processo, por meio de coaching;
- parceria com a Prefeitura de São Paulo para atuar nos CEUs (Centro Educacional Unificado) em bairros da periferia;
- desenvolvimento de tecnologias esportivas pedagógicas inéditas (softwares), a serem introduzidas nos equipamentos públicos para obter gestão, planejamento e controle mais eficientes das atividades realizadas e, consequentemente, desempenho superior na educação pública.
Vale ressaltar que a ONG cria um paralelo entre o esporte e a vida por meio de uma metodologia em desenvolvimento que torna possível abordar assuntos delicados, os quais dificilmente seriam abordados de forma explícita em sala de aula ou em público.
Como exemplos dessas habilidades ou valores podem-se citar a tolerância ao erro, a resiliência que se constrói coletivamente, as reações diante da vitória bem como da derrota, a disciplina e o respeito às regras do jogo, ao diferente e ao adversário.
DEPOIMENTOS
"Você olha para mim e vê que não tenho porte físico para competir com outros meninos. Sempre fui motivo de chacota. No futebol, era o último a ser escolhido e, quando isso acontecia, tinha que agarrar no gol. Eu era meio que humilhado, sabe.Por isso ficava bravo, meio desobediente, na escola e em casa. Não sou de briga, mas me irritava com meus irmãos e na rua, por qualquer coisa.
Quando soube que teria rúgbi no CEU Navegantes (zona sul de São Paulo), decidi fazer. Era novidade, ninguém conhecia, então achei que, se fosse um dos primeiros, poderia praticar o esporte sem ser excluído.
E vivi minhas maiores emoções aqui: fui jogar torneio, ganhei medalha e fiz gol (try, no rúgbi), vários até, porque não tem essa de eu ficar só no gol, na defesa. Não tem o individualismo do futebol.
Além de ser atividade física, o rúgbi mudou minha vida, porque, no início, eu vim sem tênis. Moro atrás do CEU, pertinho. Mas não tinha tênis para treinar. Em respeito à regra do esporte, vim avisar que ficaria fora até conseguir tênis.
Depois de imaginar que iria embora triste, sem jogar ou por ver o treino de fora, todos, da Hurra! e da turma, se dispuseram a jogar rúgbi descalços naquele dia e até quando eu arrumasse calçado. Foi incrível.
Por isso me sinto numa família, respeitado. Até recebo elogios. E eu levo esse respeito para fora, porque até treino com meus irmãos menores, a Steffany [10 anos] e o Gabriel [8 anos] -são cinco ao todo-, com quem eu só brigava.
Foi aqui que ganhei algo pela primeira vez na vida _uma bola de rúgbi_ e fiz muitos amigos, até de outros CEUs.
Nunca tive sonhos, mas hoje quero ser jogador de rúgbi ou engenheiro. Não sei quem são os caras da seleção, mas só de conhecer o Chubby (Leandro Gevaerd, instrutor da Hurra!), o Mili (Maurício Migliano, diretor técnico) e o Gargamel (Eduardo Pacheco, presidente da Hurra!) já vale.
Foi Chubby quem convenceu meus pais de que o rúgbi é saudável. Minha mãe tinha medo, mas está adorando. Hoje, em vez de brigar, ensino rúgbi em casa. Daqui a pouco vou trazer meus irmãos para o CEU.
Estou mais calmo. Até ganhei massa muscular, não para comprar briga, mas para seguir calmo.
Hoje mesmo, tomei tijolada na cabeça em briga de rua da qual não fazia parte. Antes, eu correria para pegar outro tijolo e esperar o melhor jeito de pegar quem me acertou.
Agora não ligo, só me preocupo em treinar. Pois, do jeito que mudou minha vida, pode mudar meu futuro."
GUSTAVO BRITO DOS SANTOS, 12, praticante de rúgbi pela Hurra! no CEU Navegantes