Editorial: Filhos de Francisco
Desde o início, o papa Francisco tem buscado construir uma identidade marcada pelo despojamento e pela atenção contínua aos pobres. Ao liderar pelo exemplo, ele enfatiza sua visão de que o mundo precisa ser mais solidário e menos desigual --mensagem especialmente apropriada para o Brasil.
Francisco decerto não ignora o aspecto publicitário de suas ações, amplificado por constituírem notável novidade em um Estado acostumado à ostentação.
No Vaticano, por exemplo, dispensou o carro usado pelo antecessor, Bento 16, e o substituiu por um modelo mais simples. Além disso, preferiu aposento menos luxuoso, destinado a cardeais, ao tradicional palacete a que teria direito.
Isso legitima a atitude saneadora que Francisco procura imprimir à estrutura eclesiástica, marcada por recentes escândalos de abuso e corrupção. Numa organização tão hierarquizada, alguns efeitos são imediatos: há notícias de padres que se desfizeram de seus carros de alto padrão e de cardeais que optaram por trajes menos vistosos.
Verdade que a opção pelos pobres já estava presente na teologia da libertação --corrente de esquerda com grande influência na igreja latino-americana e que foi duramente reprimida a partir do pontificado de João Paulo 2º.
Sem resgatar aquele movimento, Francisco retoma o compromisso social, mas com uma diferença decisiva: ele reforça o lado místico dessa aproximação. Ou seja, mais que uma atitude política, trata-se de necessidade da própria experiência religiosa cristã --a caridade do indivíduo reaparece como principal ação reformista, em detrimento de transformações estruturais provocadas por movimentos da sociedade civil organizada.
Em sua visita ao Rio de Janeiro, não é improvável que o papa encontre protestos contra as orientações da igreja e os gastos públicos com o evento.
Em Madri, em 2011, onde ocorreu a mais recente Jornada Mundial da Juventude --idealizada pelo papa João Paulo 2º e realizada pela primeira vez em 1986--, foram registrados atos de jovens espanhóis, conhecidos como "indignados".
Se há objeções a dogmas católicos, manifestantes talvez identifiquem na simplicidade de Francisco mais um motivo para criticar os políticos brasileiros.
Lado a lado, será inevitável a comparação entre o papa e o governador do Rio, Sérgio Cabral (PMDB), que utiliza vários helicópteros do poder público para transportar familiares e até seu cão de estimação. O mesmo vale para a presidente Dilma Rousseff (PT), que, ao viajar a Roma a fim de assistir à missa inaugural do pontífice, reservou 52 quartos de hotel para sua comitiva.
Pela forma como tem agido até agora, o papa tende a enfatizar no Brasil, ao longo de 17 intervenções, a busca pela fé em Deus e a tradicional crítica da igreja à sociedade de consumo. Temas mais polêmicos, como o casamento gay, devem ficar em segundo plano.
Pastor por excelência, Francisco segue caminho diferente do trilhado pelo intelectual Bento 16 --agora papa emérito--, mais afeito a questões de doutrina teológica.
Seria um erro, contudo, falar em ruptura, como ficou demonstrado na primeira encíclica sob o novo papado, "A Luz da Fé", assinada pelos dois pontífices --a primeira na história escrita a quatro mãos.
De resto, são conhecidas as opiniões conservadoras de Francisco. Ainda arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio mostrou-se alinhado com alas contrárias ao aborto, à ordenação de mulheres e ao casamento gay, mas favoráveis à manutenção do celibato.
No Brasil, o simpático papa Francisco terá o desafio de ajudar a estancar a contínua perda de fiéis, que buscam denominações pentecostais ou simplesmente deixam de ter religião.
Pesquisa Datafolha mostra que o encolhimento é rápido: hoje, 57% dos brasileiros com mais de 16 anos se declaram católicos, contra 64% em 2007, ano da última visita papal; em 1994, eram 75%. Na Grande São Paulo, os católicos são 44% da população, proporção que sobe para 58% no interior do Estado.
Além de menor, é uma igreja sem grandes referências. Uma geração atrás, nomes como dom Paulo Evaristo Arns e dom Hélder Câmara se faziam presentes nos debates nacionais. Atualmente, essa participação se restringe a comunicados da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). As figuras católicas de maior projeção são padres cantores, mais próximos do mundo das celebridades.
Embora em declínio, a Igreja Católica ainda é capaz de mobilizar grandes contingentes. Essa característica será potencializada na Jornada Mundial da Juventude no Rio, a primeira grande viagem internacional do papa argentino.
Atento à importância dos pequenos gestos, Francisco saberá explorar essa grande oportunidade.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Comentários
Ver todos os comentários (4)LUIZ RUIVO FILHO
21/07/2013 10h55 DenunciarDéjà vu
21/07/2013 09h28 DenunciarÉ pra lá de óbvio que o "Exemplo de Cima". Não é o que se cobra diariamente dos governantes de todos matizes. A Verdade está em atitudes simples. Jesus com seu exemplo mudou o mundo ocidental. Gandhi com sua resistência passiva, conseguiu libertar a Índia do colonialismo britânico.
Déjà vu
21/07/2013 09h15 DenunciarAcredito que MANCHETES sensacionalistas para aumentarem a venda de jornais, geram desinformação. Em relação aos gastos com a viagem do Papa, segundo a P H O L HA, dos 350 milhões - 70% das despesas serão pagas por DOAÇÕES, 20 milhões de PATROCÍNIOS e 7,8 milhões de serviços na contratação de serviços de saúde feito prefeitura do RJ. Vemos que dinheiro público é em torno de 2% do total. Tem gente que gasta quase esse valor em uma noite de festa de casamento.
Certamente existe uma grande expectativa, até curiosidade, sobre as questões que serão trazidas ao debate da juventude, senão de todos àqueles que professam a fé do catolicismo, evangélicos e outras que por aí existem. Pelo que se tem percebido e contrariando a todos, o Papa Francisco prega a humildade e a caridade para os mais humildes e pobres, despojando-se da ostentação e da riqueza da Igreja. Creio que todos, senão a maioria da população refletirá sobre os novos atos e hábitos da vida.