Bloco de basalto achado por brasileira simboliza disputa na Terra Santa

Crédito: Universidade Hebraica de Jerusalém Reutilização de pedra com menorá pode ser lida como espécie de representação de vitória
Reutilização de pedra com menorá pode ser lida como espécie de representação de vitória

DANIELA KRESCH
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE TEL AVIV

A arqueóloga Kátia Cytryn-Silverman estava tentando provar que uma construção milenar em Tiberíades, cidade bíblica às margens do mar da Galileia, era originalmente uma mesquita antiga e não, como pensavam seus colegas, um mercado bizantino.

Conseguiu, mas acabou descobrindo algo ainda mais incrível e que simboliza, de certa forma, a história de uma região disputada por judeus, cristãos e muçulmanos.

Nas escavações no local, Kátia, 49, que nasceu no Rio de Janeiro e imigrou para Israel aos 19 anos, descobriu um degrau de escada com um símbolo judaico entalhado na pedra: uma menorá (candelabro de sete braços).

A pesquisadora do Instituto de Arqueologia do Departamento de Estudos Islâmicos e do Oriente Médio da Universidade Hebraica de Jerusalém quase não acreditou no que estava vendo. Por que uma pedra de basalto com uma menorá estaria no chão como degrau de escada?

"Você escava com uma proposta, mas nunca sabe o que vai descobrir", diz Kátia. "Estávamos preparando aquele quarto para fotografar e começamos a limpar os degraus quando um trabalhador tirou as pedras que estavam em cima do primeiro degrau e se deparou com essa menorá".

Kátia Cytryn-Silverman é especializada no período islâmico, mas, por causa da escavação em Tiberíades, voltou atrás no tempo para descobrir os segredos do sítio arqueológico. O mistério da utilização e reutilização desse pedaço de pedra por tanta gente se transformou em uma das descobertas mais interessantes que a brasileira já realizou em seus mais de 25 anos de carreira como arqueóloga.

A descoberta aconteceu em 2010, mas só recentemente Kátia colocou o ponto final no enigma milenar com o artigo "Tiberíades, de sua fundação até o fim do período islâmico inicial", publicado no volume 2 do livro "Galileia –no final do período do Segundo Templo e da Mishná".

A brasileira descobriu que a menorá havia sido entalhada numa pedra de basalto que era, originalmente, a porta de uma tumba judaica de uma família que morava na região de Tiberíades entre os séculos 2º e 4º da Era Cristã. A pesada porta (com 78 cm de altura e 68 da largura), é típica da época em que os corpos dos mortos eram depositados, em cemitérios, dentro de covas familiares cerradas com portas maciças para evitar pilhagem ou profanação.

Tiberíades se tornou um dos maiores centros da vida judaica da região depois de 70 d.C., quando Roma destruiu o Segundo Templo judaico (o Templo de Herodes), incendiou Jerusalém e expulsou os judeus da cidade. Por volta de 190, o Sinédrio, uma espécie de Suprema Corte judaica, se estabeleceu na cidade.

Em 635, com a conquista muçulmana da região após a morte de Maomé, a cidade passou a ser a sede de um califado regional. No seculo 8º, uma mesquita monumental inspirada pela Grande Mesquita de Damasco substituiu a primeira, mais simples. A "pedra-porta", que tinha sido dispersada talvez pelo terremoto de 363 juntamente com outras do cemitério, foi reutilizada como fundação dessa nova mesquita.

No jargão arqueológico, esse tipo de reuso intencional de material é chamado de "spolia". São espólios dos prédios destruídos ou abandonados usados como troféus ou símbolos de vitória. Pelo menos 13 dessas portas de basalto foram colocadas no chão da construção para servirem de base para pilares da mesquita.

"É um uso secundário, uma reciclagem. Mas é uma reutilização simbólica. É um símbolo de triunfo, de vitória", diz Kátia. "Nesse período de construção islâmica, não há relação negativa quanto a materiais funerários, então não há a questão da profanação. Existe a parte pragmática e existe a parte simbólica desse uso."

A mesquita foi destruída por um terremoto em 1068, pouco antes da conquista cruzada (1099). Foi a vez dos cristãos reutilizarem a pedra com a menorá em uma construção própria. Decidiram colocá-la como um degrau de escada de um engenho de açúcar que a ordem cruzada dos Hospitalários construiu no local.

Crédito: Universidade Hebraica de Jerusalém A arqueóloga brasileira Kátia Cytryn-Silverman
A arqueóloga brasileira Kátia Cytryn-Silverman junto à pedra usada por muçulmanos, judeus e cristãos

Na época, havia um extenso cultivo de açúcar para fins medicinais na região do Mar da Galileia e Vale do Jordão. O uso deste engenho de Tiberíades continuou até o século 13, quando o prédio desmoronou. Kátia não sabe se o emprego da pedra com o candelabro talhado pelos cruzados foi realizado mais por pragmatismo do que por motivações simbólicas:

"É difícil pensar que durante o período cruzado não soubessem da importância da menorá para o judaísmo. Mas, será que as pessoas que construíram esse engenho de açúcar tinham realmente essa consciência? Escolheram a 'menorá' para ser o primeiro degrau desse quarto porque era um ornamento bonito ou porque significava algo?", pergunta Kátia. "Será que pisar em algo, naquela época, tinha a conotação de hoje? Pode ser que escolheram aquela pedra porque a escada levava para um quarto especial."

TIBERÍADES

Tiberíades, batizada assim em homenagem ao imperador romano Tibério, é citada nos Evangelhos como parte das andanças de Jesus na região do mar da Galileia, antes de sair em pregação até Jerusalém. A cidade fora fundada em 20 d.C. por Herodes Antipas, que aparece no Novo Testamento como parte da Paixão de Cristo. Com a chegada do Sinédrio (190 d.C.), se tornou um centro importante da vida judaica.

No começo do período bizantino (século 4º), foi a vez de os cristãos chegarem à cidade. Um século depois, uma grande catedral foi construída na parte baixa e continuou funcionando por 600 anos, mesmo depois de 635, quando os muçulmanos tomaram a cidade e passaram a construir mesquitas.

Com a chegada dos cruzados, em 1099, Tiberíades se tornou parte do Reino Latino de Jerusalém. Caiu novamente em mãos islâmicas em 1187, quando Saladino reconquistou Jerusalém e ajudou na saída final dos cruzados na Terra Santa (1291). Hoje, a cidade, majoritariamente judaica, tem 39 mil habitantes.

As encarnações de uma pedra de basalto adornada por um candelabro resumem o ir e vir de culturas e conquistas nessa parte da Terra Santa no decorrer de milênios. Uma região que, ainda hoje, é disputada por tantos.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.