Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Violência
Era uma dessas salas de cinema mais ou menos cult. Quando ela entrou, o filme já tinha começado. Fez a maior confusão pra encontrar seu lugar, por acaso a poltrona à minha frente. Uma senhora ao meu lado disse "chega atrasada e ainda atrapalha a sessão" e lá de trás uma voz masculina gritou "silêncio".
Ela ergueu os braços num losango e prendeu o cabelo num rabo de cavalo. Depois tentou desligar o celular, mas o botão travou. "Tomara que ninguém me ligue", disse pro homem de barba à sua esquerda, que respondeu com uma careta irritada.
Ilustração Guazzelli | ||
Ficou tranquila por alguns minutos. Mas logo começou a olhar insistentemente pra direita, de onde vinha, é verdade, um cheiro maravilhoso de pipoca. A duas poltronas de distância, protegida apenas por um adolescente de óculos sentado entre as duas, a dona da pipoca olhou de volta pra ela, com raiva ou medo, não sei. Eu só conseguia enxergar melhor nos momentos em que a câmera saía da diligência escura e mostrava os campos do Wyoming cobertos de neve.
Então minha vizinha de frente se debruçou sobre o garoto e abriu o coração pra outra mulher:
– Cê vai me desculpar, querida, mas peguei um trânsito terrível, cheguei atrasada e não tive tempo de comprar pipoca, que eu amo. Tava aqui sentindo esse cheirinho e pensei: será que é muito chato pedir uma pipoquinha pra alguém que não conheço?
O que tinha exigido silêncio agora gritava "cala a boca, sua louca" –e teve início um linchamento verbal. O clima ficou mais tenso do que na hospedaria onde os caubóis se protegiam de uma nevasca.
Mas a que foi chamada de louca não pareceu se importar. Meteu a mão no balde de pipocas que a vizinha, atordoada, lhe oferecia. Quando a pipoca acabou, estendeu o braço –sem mover o tronco nem virar a cabeça– e arrematou mais uma porção.
Tive um ataque de riso. A partir daí fiquei dividido entre prestar atenção no filme ou na plateia.
Após duas horas de falação infinita, o sangue jorrou no chão da Minnie's Haberdashery. Ela não deixou barato: fuçou na bolsa várias vezes; atendeu o telefone com um "oiiiii" animadíssimo; perguntou pro cara barbudo qual era mesmo o nome do ator negro.
Pra fechar a noite, quando as legendas estavam quase no fim (é preciso coragem pra sair do cinema), percebi que ela estava chorando. A essa altura eu já me sentia íntimo dela. Perguntei se podia ajudar de alguma forma.
– Eu nunca vi nada tão violento –respondeu.
– É que o Tarantino...
Ela me cortou:
– Vim porque um sobrinho me disse que era uma comédia. Mas acho que era uma piada, né?
Eu a acompanhei até a rua e tentei explicar que não valia a pena sofrer por aquilo. Que esse diretor explodia cabeças só por diversão. Sua linguagem não era realista e, num certo sentido, sua violência era leve. Ela me olhou muito assustada e se despediu com uma frase confusa sobre almas perversas e o remédio que é Deus. Depois desceu a Augusta depressa, como se um bando de cachorros invisíveis quisesse estraçalhar seus tornozelos.
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