É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
A resistência oral dos irredutíveis gauleses
No apagar das luzes de 2015, uma boa notícia vinda da França, depois dos atentados que marcaram o ano: "O Papiro de César", o segundo álbum da série Asterix concebido pela dupla Jean-Yves Ferri (texto) e Didier Conrad (desenhos), é ainda melhor que o primeiro, "Asterix Entre os Pictos" (2013).
Para quem não sabe, as aventuras do pequeno guerreiro e seu inseparável amigo Obelix foram criadas em 1959 pelo roteirista René Goscinny e pelo desenhista Albert Uderzo para o semanário "Pilote". A partir de 1961, eles deram início à coleção de álbuns em que os "irredutíveis gauleses" fazem de gato e sapato os invasores romanos do imperador Júlio César.
Com a morte de Goscinny, em 1977, os álbuns passaram a ser escritos por Uderzo, que continuou garantindo a qualidade gráfica da coleção, mas descaracterizou o seu mote principal, em que a Gália do ano 50 a.C. é uma óbvia referência à França sob a ocupação nazista, com os habitantes da pequena aldeia de Asterix representando a resistência.
Até então, o único elemento sobrenatural das histórias era a poção mágica criada pelo druida Panoramix, que dava força avassaladora aos gauleses. Uderzo, porém, contaminou enredos com "gadgets" de 007 ("A Odisseia de Asterix") e extraterráqueos inspirados nos mangás japoneses ("O Dia em que o Céu Caiu").
Reprodução | ||
Obelix e Superpolemix, inspirado em Julian Assange, no novo álbum da série "A Resistência Oral dos Irredutíveis Gauleses" |
Com a aposentadoria de Uderzo, Ferri e Conrad retomaram o espírito original, alternando as viagens de Asterix em auxílio de outros povos resistentes (caso dos "pictos" escoceses) com enredos nos quais César acossa a aldeia, como neste novo álbum.
Aqui, não faltam ironias ao mundo moderno, em especial à era da internet, com seus escândalos e vazamentos de informações.
Tudo começa quando César resolve publicar uma história de suas conquistas na Gália, mas é aconselhado por seu editor a suprimir um capítulo sobre as derrotas para os guerreiros de Abracurcix, chefe da aldeia de Asterix.
Um original do expurgado capítulo é contrabandeado por um escriba de nome Wikilikis para o ativista gaulês Superpolemix (inspirado no cibermilitante Julian Assange, do site WikiLeaks, que divulgou documentos confidenciais dos EUA), dando início a uma rocambolesca disputa pelo papiro que conspurcaria a história oficial de César.
Um dos méritos do álbum está justamente em não introduzir parafernálias eletrônicas estranhas ao mundo de Asterix para aproximar dois tempos tão distantes, mas buscar paralelismos com as tradições oral e escrita da Antiguidade.
Os gauleses burlam as manipulações da propaganda romana através da memória de seus druidas refugiados na misteriosa floresta dos Carnutes, que repassam a "verdadeira" história da Gália resistente de ouvido a ouvido, culminando, já na última página, numa linda homenagem aos criadores de Asterix -quando Goscinny e Uderzo recebem de um druida contemporâneo as lendas que celebrizaram.
Conexões
LIVROS
-
O colunista Manuel da Costa Pinto ainda dá dicas culturais para que você fique em casa —e ainda aproveite o dia!
DISCO
*
Divulgação |
LIVRO
*
FILME
*
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade