É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Último movimento
No espaço de uma semana, a música perdeu dois de seus ícones. No campo erudito, Pierre Boulez; no rock, David Bowie. Deixo o cantor inglês para André Barcinski, que assina a versão "Pop" desta coluna, e convido o leitor a ver com ouvidos bem abertos o DVD "Boulez +", lançado no fim de 2015 em homenagem aos 90 anos do compositor francês.
A gravação faz parte de uma série que justapõe nomes fundamentais da música moderna a brasileiros que com eles dialogam, como nos CDs "Ligeti +" e "Berio +". Aqui, o suporte é um DVD duplo em que os diferentes registros musicais são acompanhados de imagens elaboradas pelo videomaker Raimo Benedetti.
São pulsações gráficas e morfologias do espectro sonoro, indicando a seara estética que adentramos: a música eletroacústica e tudo que a ela associamos –experimentação e cerebralismo, com o material sonoro (timbres acústicos processados ou produzidos eletronicamente) se sobrepondo a melodia, harmonia e ritmo.
No entanto, este "Boulez +" mostra justamente como o mestre francês conseguiu dotar as asperezas da música especulativa –que busca sempre ampliar o campo do possível no âmbito da técnica e da estrutura– de uma expressividade que, se não corresponde a nossos padrões de eufonia, também contraria expectativas de uma frieza laboratorial.
François Guillot 5.nov.2008/AFP Photo | ||
O compositor e maestro francês Pierre Boulez |
A exemplo do primeiro poeta moderno, Baudelaire, que identificou uma nova sensibilidade e uma nova percepção estética na experiência de choque da nascente metrópole, Boulez, o último compositor moderno, produz nas duas peças para violino aqui gravadas uma estranha beleza, em que deslizamentos melódicos são entrecortados por uma série de tensas figuras que ao mesmo tempo materializam e perturbam o estupor pós-moderno.
O primeiro DVD abre com "Anthèmes 1" (1991) e o segundo fecha com "Anthèmes 2" (1997), peças que carregam no título a negação da ideia tradicional de "tema" musical e explicam por que Boulez seria, como dito acima, o último moderno: quando até a música –arte que deveria tender ao absoluto, à autonomia radical como reação e resistência às linguagens que reproduzem o mundo– sucumbiu a um ecletismo aquiescente com o que já está assimilado, Boulez persevera na invenção do novo e faz da música um ponto de fuga que inocula forma na experiência amorfa.
E se, de uma obra a outra, incorporam-se elementos eletroacústicos, as peças dos compositores brasileiros (Sergio Kafejian, Tiago Gati, Marcus Siqueira, Martin Herraiz, Alexandre Lunsqui e Flo Menezes, organizador do DVD) fazem largo uso de timbres pré-gravados ou produzidos no tempo real das interpretações do violinista Claudio Cruz.
São peças que, aqui reunidas, celebram a influência de um compositor que recorreu à alta modernidade de Debussy, Webern e Messiaen para escrever seu último movimento.
Conexões
DISCOS
BOULEZ +
QUANTO: R$ 40
AUTOR: VÁRIOS
GRAVADORA: SESC SP
BOULEZ: LE MARTEAU SANS MAÎTRE
Obra de 1954 se baseia em versos do surrealista René Char e, no pós-guerra, teve importância semelhante à de "Pierrot Lunaire" (1912), de Schoenberg.
QUANTO: R$ 79,90 - IMPORTADO
AUTOR: ENSEMBLE INTER CONTEMPORAIN
GRAVADORA: DEUTSCHE GRAMMOPHON
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FILME
MAHLER: SYMPHONY Nº 2
Regente que privilegiou compositores modernos como Mahler, Stravinsky e Bartók, Boulez pode ser visto aqui em seu estilo contido e preciso.
QUANTO: DVD - 2010, R$ 49,90
AUTOR: STAATSKAPELLE BERLIN
DISTRIBUIDORA: MUSIC BROKERSFILME
Livraria da Folha
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