Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.
A lenta revolução do Brasil
Cícero O. Netto-11.fev.1982/Folhapress | ||
O escritor e historiador Sérgio Buarque de Holanda em entrevista à Folha, em fevereiro de 1982 |
Depois dos períodos de Fernando Henrique e Lula, cristalizou-se a sensação de que enfim o Brasil encontrara um caminho sustentado até o desenvolvimento. Haveria percalços à frente, mas não esse descarrilamento que sobreveio nos últimos anos. Com ele, voltou uma sensação oposta e bem conhecida, a de que a linha evolutiva da sociedade brasileira é lenta e truncada, incompleta.
Essa ideia de lentidão tem sido recorrente; aparece num dos ensaios clássicos sobre a formação nacional, "Raízes do Brasil" (1936), do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Quando completou 80 anos, a obra foi comentada aqui (22.5.16 ). Meses depois veio à luz republicação acompanhada de minucioso aparato crítico, que focalizava as mudanças que o autor introduziu na segunda edição do livro, de 1948.
Ressaltou-se que certas passagens da primeira versão, as quais traziam um timbre iliberal e até antidemocrático, foram suprimidas nas versões posteriores. Aventou-se que o crítico Antonio Candido, em sucessivos prefácios, teria reinventado o livro do amigo, conferindo-lhe uma radicalidade, a fim de situá-lo no campo das ideias progressistas, que não se encontrava no texto.
O autor sempre lutou com esse livro famoso e precoce, que seguiria emendando nas edições subsequentes. Assim como "Casa-Grande & Senzala"(1933), de Gilberto Freyre, "Raízes do Brasil" é uma obra de transição entre uma ensaística pré-científica, calcada em atavismos étnicos, e uma sociologia das condições socioeconômicas, vistas em perspectiva histórica. O pensamento de Sérgio Buarque evoluía, e ele estava, como todo autor, sujeito ao momento.
Todos estão. Paira um espírito de questionamento em relação a esses clássicos da autointerpretação brasileira, o que é ótimo. Mas a crítica muitas vezes se resume a transplantar critérios anacrônicos de olho nos rendimentos políticos de hoje. A obra de Gilberto Freyre, por exemplo, tem sofrido ataques sistemáticos porque sua complexidade não cabe no racialismo vigente nos departamentos de ciências humanas das universidades.
Nada disso é alheio, no entanto, à própria definição de texto clássico, disponível para ser lido e deslido sem jamais exaurir seus tesouros nem entregar todos os seus segredos, como se sua seiva rebrotasse a cada geração. Mesmo um livro superado, como "Raízes do Brasil", que tem valor mais histórico do que explicativo, contém sugestões que fazem pensar. E ali se acha a ideia de que "nossa revolução" seria lenta.
O tema é esboçado no último capítulo do livro, quando o autor deixa de lado os escrúpulos de pesquisador meticuloso para abandonar-se ao voo livre da especulação. É o capítulo mais falho, pelo que contém de amadorismo, e também o mais ambicioso em alcance e fantasia. A revolução de que fala o historiador é a da universalização de direitos e da modernização capitalista. Induzida pela urbanização, caberia a ela superar o passado colonial escravocrata.
Todo o raciocínio que embasa o livro segue de perto o esquema do sociólogo alemão Max Weber, que introduziu o conceito de patrimonialismo para caracterizar, nas sociedades agrárias pré-capitalistas, a usurpação de recursos públicos por interesses particulares e o consequente predomínio, na esfera político-jurídica, de relações privadas de dependência e mando. A célebre "cordialidade" nada mais seria que a versão brasileira desse estágio.
Sob influência de outro sociólogo, Georg Simmel, que ele teria estudado no período em que viveu na Alemanha (1929-30), Sérgio Buarque atribui à urbanização o poder de dissolver os alicerces da velha ordem, abrindo caminho à sua substituição pela democracia impessoal de molde burguês. Esse é, entretanto, "um processo demorado, que vem durando pelo menos há três quartos de século".
Raízes do Brasil |
Sérgio Buarque de Holanda |
Comprar |
Trata-se de uma "revolução lenta", cuja forma visível "não será, talvez, a das convulsões catastróficas", mas que nos mantém em suspenso "entre dois mundos, um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz". Embora as causas da lentidão não sejam explicitadas, fica sugerido que tenham a ver com o legado desmobilizador da escravidão e, talvez, com a permeabilidade à ascensão individual numa sociedade muito plástica, o que esvaziaria pressões coletivas.
O assunto não é apenas acadêmico; a operação judicial batizada de Lava Jato, por exemplo, representa um pequeno passo nesse percurso. Parece incrível que siga pendente essa revolução em câmera lenta, atravancada por delongas e contramarchas. Tem sido a contrapartida da ausência de uma verdadeira revolução, que nunca prescinde de uma autêntica guerra civil, com seus massacres em massa e traumas que mutilam gerações.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade