Martin Amis imerge nos horrores do Holocausto
Escritor inglês elabora sátira realista de Auschwitz em 'A Zona de Interesse'
Em nova obra, autor se recusa a nomear Hitler: 'A ideia de escrever o nome me pareceu violenta comigo mesmo'
"Se o que estamos fazendo é tão bom, por que cheira tão mal?", pergunta um dos narradores de "A Zona de Interesse", novo romance do inglês Martin Amis. Aos 65 anos, Amis, um dos escritores de língua inglesa mais reconhecidos da atualidade e autor de 14 romances, recria sua linguagem a cada livro.
Essa sátira realista sobre o Holocausto não é sua primeira incursão por Auschwitz: em seu "Seta do Tempo", de 1999 (esgotado no Brasil), os eventos transcorrem de trás para diante, de modo que o campo parece fabricar judeus em vez de dizimá-los.
Auschwitz fabricou e dizimou judeus. A Shoá (como os judeus nomeiam o Holocausto, um termo que tem origem no sacrifício religioso de animais), organiza a identidade judaica contemporânea, assim como a diáspora.
Casado com a escritora americana Isabel Fonseca, de origem judia, Amis achava que seu segundo livro sobre o extermínio precisava compensar o primeiro em pelo menos um aspecto: "Eu sentia que devia trazer um narrador judeu, isso era fundamental para que o romance fosse coerente", diz em entrevista à Folha, por telefone.
TRÊS NARRADORES
O narrador judeu é Szmul, um polonês encarregado de arrancar dentes de ouro dos mortos, descartar corpos e limpar câmaras de gás, entre outros serviços nauseantes.
Ele se soma a outros dois narradores: Golo Thomsen, um oficial nazista de segunda linha que se considera um dos muitos nazi tentando boicotar o sistema; e Paul Doll, um nazista de alta patente.
Hannah Doll, mulher de Paul e obsessão de Golo, une os dois primeiros narradores. A impressão é que Szmul empalidece diante deles. Membro do Sonderkommando --grupo de prisioneiros selecionados para executar serviços que os alemães não estavam dispostos a desempenhar-- ele carece de função interna no romance e dispara clichês como "preciso de alguma coisa além de palavras".
A passagem mais exasperante é aquela em que Szmul compara o campo de concentração a um espelho mágico que "revela a alma".
Golo é um personagem mais multifacetado. Com um massacre sistemático debaixo de seu nariz, uma mulher é sua principal preocupação.
Ele transita pelo discurso nazista e se beneficia do esquema sem se envolver afetivamente com o regime. Acha que faz o que pode com seus pequenos atos de boicote, mas descreve a si mesmo e a mulher que ama como arianos perfeitos, com todos os atributos físicos valorizados pelo nazismo.
Já Paul vocaliza a ideologia nazista mais rasa e doentia. Pragmático e dado a lógicas tortas, ele é capaz de sentar-se num concerto cheio de oficiais alemães enquanto calcula o tempo necessário para matar todos eles com gás asfixiante.
Em dado momento, justifica a crueldade de seu trabalho com o argumento de que "se tivessem a menor chance, os judeus fariam o mesmo conosco, como todos sabem".
Assim como "Coração das Trevas" não nomeia o Congo e "Harry Potter" não nomeia Voldemort, "A Zona de Interesse" não cita explicitamente Auschwitz ou Hitler. Para além de uma questão estilística --o Führer funciona como uma influência fantasmagórica, tão evidente que não precisa ser evocada--, a escolha foi uma questão de estômago: "Depois de toda a pesquisa que fiz para o livro, a ideia de escrever o nome de Hitler repetidas vezes me pareceu demasiado violenta comigo mesmo", explica Amis.
A ZONA DE INTERESSE
AUTOR Martin Amis
TRADUÇÃO Donaldson Garschagen
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 47 (392 páginas)