A vida em preto e branco
Quando o reducionismo é demasiado, a charge perde a sutileza e descamba para o estereótipo fácil
Se nem o horóscopo escapou do bombardeio, não seriam as charges, com seu alto poder corrosivo, que passariam impunes nestes tempos beligerantes. Nos últimos meses, leitores têm reclamado aqui e ali de um suposto desequilíbrio nos cartuns da página de Opinião (A2), que veem como majoritariamente tendendo à "esquerda" –o que, na linguagem atual, significa pró-governo.
Não entro no mérito da discussão ideológica. Explico sempre que cartunistas pertencem ao território franco da opinião e têm ampla liberdade de expressão. Nenhuma charge, porém, havia provocado até agora tanta reação como a de Laerte veiculada na terça-feira (18).
"A charge extrapolou os limites do bom senso, do respeito e até da provocação", esbravejou a leitora Ana Paula Costa Pacheco e Silva. "Minha ojeriza não se deu pela opinião divergente da minha, mas pela agressividade e o desprezo demonstrados ao identificar os opositores do governo Dilma como apoiadores de bandidos assassinos."
Sempre fui fã de Laerte, para mim, a pena mais inquieta de um trio genial, complementada por Angeli e Glauco (1957-2010). Laerte é cartunista com autonomia de voo ímpar, capaz de transitar com desenvoltura por temas muito díspares, ainda que sua produção nos últimos anos tenha enveredado por uma trilha irregular e mais hermética.
Não há como negar, contudo, que ela pesou a mão. Na resposta que voluntariamente quis enviar aos leitores que me procuraram (leia texto ao lado), Laerte escreve que "toda redução será, em algum grau, injusta –mas charges não podem deixar de fazê-las, porque trabalham com representações simbólicas". Endosso o conceito, mas questiono esse "algum grau". Quando o reducionismo é demasiado (e acho que foi), a mensagem perde o refinamento e descamba para o estereótipo.
Não por acaso, logo após a publicação do cartum, começou a circular pelas redes sociais uma versão apócrifa, com as "representações simbólicas" trocadas. Uma inversão facilitada pela leitura rasa: se tirar selfie com PM é apoiar assassinatos, quem defende Dilma e Lula é conivente com a corrupção. Para desqualificar o adversário, vale apelar a ideias simplistas e sofismas que encaixotam na mesma fôrma unidimensional gente de todo tipo.
O leitorado mais equilibrado não engole essa dicotomia simplista nem uma diversidade calcada em polos opostos. "A verdade é que alternar opiniões de radicais dos dois lados não atende àqueles que procuram algum bom senso na busca de uma sociedade mais unida e democrática", escreveu Ivan Casella.
Parte dos leitores cobra, com razão, a responsabilidade do jornal, que afinal autorizou a publicação.
A Direção de Redação informa que monitora textos e imagens para detectar situações que possam implicar crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação). "Nestes casos, procura-se o autor previamente para alertá-lo das consequências possíveis. A charge não incorreu nesse risco, embora tenha conotado um ataque forte e bastante discutível contra parcela significativa da população e do nosso público leitor. Em seu compromisso com o equilíbrio e a pluralidade, a Folha tem procurado veicular as reações, como atestam as edições do Painel do Leitor de quarta (19) e quinta (20)."