Para McEwan e Pinker, o significado das palavras vale bilhões
Duas das mais destacadas figuras em suas áreas, o escritor inglês Ian McEwan e o psicólogo evolucionista Steven Pinker se encontraram em 2007 para debater aquilo de que mais entendem, embora de pontos de vista diferentes: a linguagem.
Aclamado por obras como "Amsterdam" (Booker Prize de 1998), o recente "Na Praia" e a obra -prima "Reparação" --inspiradora do filme "Desejo e Reparação", que concorreu ao Oscar deste ano--, McEwan é o mais importante escritor inglês em atividade.
Já Pinker, professor na Universidade Harvard (EUA), é um grande estudioso das origens e dos mecanismos da linguagem, além de divulgador do tema em livros como "O Instinto da Linguagem".
A conversa inusitada, que o Mais! reproduz a seguir, ocorreu no Festival de Literatura de Cheltenham (Reino Unido) e foi publicada originalmente no último número da revista "Areté".
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McEwan - Steven Pinker é um desses cientistas extraordinários que sabem atrair a atenção dos leigos. Um dos grandes prazeres de ler seus livros é entrar nos processos de pensamento de um homem de extrema fluência. Às vezes eu acompanho, quando Steve participa de debates públicos, a transcrição de coisas ditas nos bastidores. E sempre fico impressionado por sua extraordinária inteligência e articulação --apesar de ele não estar usando um processador de texto-- ao defender uma posição ou atacar uma tese.
Um pouco de história: nos dias muito sombrios em que a teoria literária dominava suprema os dutos do pensamento na academia, e eu vivia em Oxford, um bom amigo apareceu certa noite. Ele estava incrivelmente triste porque seus alunos achavam que não poderiam mais ler "Middlemarch" [romance de George Eliot] ou qualquer coisa do cânon antes que aprendessem a ler _ e para isso precisavam aprender teoria. Eu levantei rapidamente da cadeira e disse: "Ah, ha! Eu conheço o livro: uma teoria da linguagem baseada em evidências". E coloquei nas mãos dele "O Instinto da Linguagem", de Steven Pinker, um dos melhores livros sobre o modo como usamos e adquirimos a linguagem.
Ele explica que os que acreditam que a linguagem é adquirida por pura imitação estão abordando o problema de maneira errada. Mais tarde eu descobri, e realmente pretendia escrever para você [dirigindo-se a Pinker] sobre isso, que hoje todos os alunos de meus amigos devem ler no primeiro ano, e na verdade no primeiro semestre, capítulos selecionados de seu livro --como um antídoto à especulação de poltrona sobre fases do espelho e tudo o mais na teoria literária. Então você teve um grande impacto na Universidade de Oxford.
Steve, antes de falarmos sobre seu novo livro, "O Material do Pensamento" --de várias maneiras uma síntese do que aconteceu antes--, quero lhe perguntar, em primeiro lugar, sobre seu papel como escritor de ciência popular. Por trás dessa figura existe um cientista muito ativo, que publica trabalhos que pessoas como nós nunca lêem. Essa ciência dura tem algo a ver com a maneira como as crianças aprendem a língua. Você, como cientista, poderia nos falar sobre isso?
Pinker - Eu cheguei à linguagem partindo da psicologia, na verdade. Não sou um lingüista. Sempre fui um psicólogo experimental. Na verdade, minha pesquisa de doutorado e grande parte de minha pesquisa anterior foram sobre imagens tridimensionais, sobre reconhecimento de objetos e atenção visual. Para mim, a linguagem é uma das coisas incríveis que a mente humana é capaz de fazer, e em certo ponto de minha carreira decidi me concentrar nela em termos de pesquisa. Um dos principais tópicos que me interessavam na psicologia da linguagem era, como você disse, o modo como as crianças aprendem.
As crianças claramente têm de aprender uma determinada língua, porque se forem criadas no Japão acabarão falando japonês, e se forem criadas na Inglaterra acabarão falando inglês. Mas, claramente, aprender uma língua não pode ser apenas uma questão de gravar frases individuais, porque as crianças não são papagaios. Elas não regurgitam simplesmente o que ouvem de seus pais. A essência da linguagem é a capacidade de juntar palavras em novas combinações, e é o que nos permite expressar um leque ilimitado de pensamentos. Assim, o problema científico no desenvolvimento da linguagem é: como as crianças passam de um número finito de sentenças que ouvem de seus pais ou pares e extraem o algoritmo subjacente que combina palavras em frases e sentenças e palavras maiores?
Em uma fase de minha pesquisa, me concentrei em um fenômeno muito pequeno da linguagem. Eu tinha escrito uma espécie de teoria de tudo, um livro técnico, delineando uma teoria da aquisição da linguagem. Mas acabou sendo um problema grande demais para estudar empiricamente --simplesmente o desenvolvimento da linguagem em toda a sua glória--, por isso em diversas etapas eu escolhi dois problemas. Um deles levou a este último livro, "O Material do Pensamento".
Mas o outro era sobre verbos irregulares, que parece um tema improvável para se dedicar uma década e meia de sua vida. Eu digo que está na grande tradição acadêmica de saber cada vez mais sobre cada vez menos, até você saber tudo sobre nada. O que talvez seja um bom antídoto para meus outros livros, que acho que podem ser criticados por saber cada vez menos sobre cada vez mais, até você saber nada sobre tudo.
Mas, neste caso, os verbos irregulares --verbos que têm uma forma de passado imprevisível: "bring, brought" [trazer, trouxe], "come, came" [vir, veio], "take, took" [tomar, tomou], em oposição a formas regulares como "walk, walked" [andar], "play, played" [brincar, jogar] etc.-- me pareciam interessantes porque uma forma irregular, por ser idiossincrática, tem de ser memorizada (que é o que fazemos com as palavras no início, porque toda palavra é uma combinação arbitrária entre um som e um significado).
Um verbo regular pode ser memorizado, mas não precisa ser. Quando um novo aparece na língua, como "to blog" ou "to spam", você não precisa procurar no dicionário sua forma passada, nem precisa consultar a memória, basta acrescentar o sufixo "-ed".
Isto no microcosmo resume o que eu considero os dois motores da linguagem: memorizar palavras e combinar pedaços de palavras de acordo com regras.
Erros como "we holded the baby rabbits" [em vez de "held"] ou "she breaked my toy" [em vez de "broke"] mostram que as crianças nessa fase devem ter adquirido uma regra produtiva. Elas claramente não memorizaram essas formas ouvindo seus pais.
E eu fiz vários estudos sobre quase todos os aspectos dos verbos irregulares de que pude me lembrar, o cronograma do desenvolvimento dessas formas --de onde vinham essas formas na história da linguagem; por que temos formas irregulares; que partes do cérebro podem estar diferentemente envolvidas na combinação regida por regras versus busca na memória? E eu tentei (improvavelmente) escrever essa pesquisa em um livro popular chamado "Words and Rules" [Palavras e Regras], que foi publicado alguns anos atrás.
A outra área em que me concentrei --estreitando o interesse, em vez da linguagem como um todo-- foram os verbos. Isto é, a sintaxe e a semântica dos verbos. O ímpeto imediato foi a pergunta: como as crianças adquirem essa parte tão importante da linguagem? O que torna os verbos importantes é que cada verbo não é apenas uma palavra, é um alicerce para o resto da sentença: o verbo define espaços para o sujeito, exige um objeto se for um verbo transitivo, às vezes complementos do objeto e assim por diante. O verbo realmente mantém a frase unida.
Entender como as crianças adquirem os verbos é uma grande parte de entender como elas aprendem a falar em geral. No entanto, quanto mais você examina os verbos, mais difícil é entender, em primeiro lugar, como eles funcionam para você e para mim --e ainda mais como as crianças entendem tudo isso. Apenas para propor um quebra-cabeça, simplesmente entender a sintaxe dos verbos não é simples. Você pode dizer "eu despejei água no copo" ["I poured water into the glass"], mas é um pouco estranho dizer "eu despejei o copo com água" ["I poured the glass with water"]. Todos sabemos o que significa, mas não computa direito.
Por outro lado, com o verbo "encher" ["fill"], funciona ao contrário: você pode encher um copo com água, mas não pode encher água em um copo. É uma particularidade arbitrária, como "bring" [trazer], "brought" em oposição a "sling" [atirar], "slung"? Acontece que a resposta é não, que era previsível por um aspecto muito sutil do significado dos verbos. Embora você possa pensar que eles são quase sinônimos (duas maneiras de colocar uma substância em um recipiente), a sutil diferença é que interpretamos "despejar" como fazer alguma coisa com a água, enquanto interpretamos "encher" como fazer algo com o copo, qual seja, fazê-lo mudar de estado, de vazio para cheio.
E se há uma regra simples que diz "a coisa que é afetada é o objeto direto", a regra, com algumas modificações, poderia ser universal. Poderia ser encontrada em todas as línguas.
Assim, fazer a interpretação certa, enxergar o evento da maneira adequada, lhe permite prever que verbo e que estrutura sintática são adequados. Se você estiver fazendo algo com o copo, o copo é o objeto, portanto "encha o copo", e se você estiver fazendo algo com a água, a água é o objeto, portanto "despeje a água".
Isso abriu o mundo dos conceitos e da semântica que explorei no início de "A Matéria do Pensamento": quais são os elementos que compõem o significado dos verbos, elementos como causa, objetivo, ato, caminho, e como eles dão às pessoas maneiras alternativas de interpretar o mesmo evento. Isso torna o resto da vida muito interessante. Se algo tão simples quanto colocar água em um copo pode ser pensado de duas maneiras quase incompatíveis, o que dizer sobre como conceituamos a guerra, o aborto, a pesquisa de células-tronco, os impostos e assim por diante? De qualquer modo, foi assim que começou.
McEwan - É incrível como uma pequena coisa pode abrir coisas maiores. Vamos ficar nos verbos mais um pouco: você cita um comentário feito pelo presidente [George W.] Bush que pode ou não ter causado um grande problema para ele. Poderia falar a respeito? Há dois verbos em questão --um verbo de Clinton, "is" ["é", "há"], que exigiu certa definição e uma tática elaborada, e um verbo de Bush, "learned" ["aprendeu", "foi informado", "soube"]. O verbo de Bush tem uma conexão britânica, portanto, Steven, poderia nos conduzir por esses verbos e suas conseqüências maciças?
Pinker - Na escalada da Guerra do Iraque, muito se falou nas infames 16 palavras do discurso sobre o Estado da União feito por George Bush em janeiro de 2003, poucos meses antes da invasão. No discurso, uma das principais justificativas para a invasão foi que "a inteligência britânica 'soube' que Saddam tentou obter quantidades significativas de urânio na África". Estou citando de memória, mas se aproxima bastante. Era o chamado "yellow cake" no Níger. Como você deve lembrar, havia uma teoria de que Saddam estava construindo armas de destruição em massa, e essa era uma das principais provas.
Acontece que a inteligência britânica acreditava nisso, e tinha alguns motivos para acreditar, mas sabia-se que não era nada conclusivo. Certamente, em Washington, os assessores de Bush não acreditavam que essa fosse uma prova, mas a levaram a sério. Agora o uso comum da palavra "learn" [aprender] é o que os lingüistas chamam de verbo factivo --isto é, você não pode "aprender" algo que seja falso, a não ser no contexto específico da escola. Na escola você pode dizer que aprendemos que havia quatro papilas gustativas, e agora são cinco, mas a não ser no sentido de "ser informado", você não pode aprender algo que não seja verdadeiro. Por exemplo, eu "aprendi" a nadar, esquiar, dirigir um carro, andar de bicicleta. Todas elas são habilidades reais. É como os verbos "lembrar" e "saber", e diferente de verbos como "achar" e "acreditar".
Assim, ao dizer "a inteligência britânica 'has learned'", isso implicou uma certeza por parte de Bush que na verdade conflitava com a situação real da informação que se admitia em seu próprio círculo. Minha ilustração favorita do que é um verbo factivo vem de uma anedota de Mark Twain. Ele disse: "Quando eu era jovem, lembrava de tudo, tivesse acontecido ou não; agora que estou envelhecendo, minha memória falha, só consigo me lembrar de coisas que não aconteceram". [Risos]
Vocês todos riram, e por que isso é engraçado? Não é engraçado que sua memória falhe com a idade. O humor vem do fato de que você não pode lembrar de algo que não aconteceu. "Lembrar" é um verbo factivo: implica que quando você lembra é verdadeiro. Da mesma forma, "aprender" é um verbo factivo.
McEwan - Então, podemos seguir para o "is"?
Pinker - "Is". Depende de qual for o significado de "is".
McEwan - Sim, esse foi o famoso comentário do presidente Clinton...
Pinker - Foi uma das cinco acusações no impeachment. Ele foi acusado, mas não condenado, nesse processo em duas etapas do sistema americano. O advogado de Clinton havia sido interpelado sobre se havia relação sexual entre Clinton e Monica Lewinsky. O advogado, falando em nome de Clinton, disse "não, não há" ["no, there isn't"]. A realidade, é claro, é que eles haviam tido um caso, que já tinha terminado na época do depoimento. Quando esse depoimento foi contestado mais tarde como completamente falso, ele disse que dependia do significado de "há" ["is"]. Se significar "há" no momento presente, a declaração foi precisa. Se "há" significar "há e sempre houve", então não seria precisa --mas não é assim que as pessoas entendem comumente o tempo presente.
Se você examinar direito, era semanticamente justificável. Acho que há dois motivos para isso ter causado gritos de zombaria e indignação. Um deles é que, diferentemente de um fato simples --como deixar um emprego e começar em outro, assinar um papel, receber seu pagamento de uma fonte diferente etc.--, o modo como um caso de amor ou de sexo termina é impreciso. Quando você tem uma série de encontros que se agrupam em uma nuvem de eventos temporários, o que você pode contar no fim é discutível. Quantos meses têm de passar para que se possa dizer que não há sexo? Isto é, poderia haver amanhã, não poderia? Esse foi um aspecto.
O outro, é claro, é a diferença entre o que os lingüistas chamam de semântica versus pragmática. "Pragmática" é o que as palavras significam e como você as usa em um contexto social. Grande parte de nossa utilização dos verbos e da linguagem depende de interpretá-las e embalá-las em contextos. Por exemplo, um fumante que diz "Parei de fumar", mas cujo último cigarro foi dez minutos atrás, está usando uma sentença semanticamente defensável. Mas nós damos risada --diante do contexto. Comumente, na conversação, nós cooperamos com nossos interlocutores, damos indícios do que o ouvinte espera escutar. Se não fizéssemos isso, a conversa empacaria na linguagem dos contratos jurídicos.
O fato é que, em um contexto jurídico, por definição, você não está em uma situação de cooperação, está em uma situação de oposição. Quando você jura dizer a verdade, nada mais que a verdade, está em uma situação em que o conceito de toda a verdade está em discussão. Toda a verdade é o que eu acho que estava em questão ali. Obviamente o promotor queria saber se houvera sexo alguma vez, e não se eles estavam atualmente tendo um caso. Então o que Clinton disse, por meio de seu advogado, embora sendo tecnicamente preciso, foi contrário ao espírito da conversa. Mas não é necessariamente desonesto --porque, no processo legal, a questão é o que você é obrigado a dizer. Clinton disse, eu acho que com razoável precisão, em sua defesa mais tarde, que estava tentando ser verdadeiro-- mas não extremamente útil. Na conversa comum temos de ser as duas coisas, e acho que foi isso que causou indignação.
McEwan - Não são anjos dançando em uma cabeça de alfinete. Caso reste alguma dúvida nesta sala sobre a extraordinária importância e as conseqüências da semântica, poderíamos tomar apenas mais um exemplo --aquele com que você começa seu livro, referente à destruição das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001: se foi um evento ou dois. Muito dinheiro dependia dessa decisão. A semântica foi crucial para as vastas somas de dinheiro pagas por uma seguradora...
Pinker - Três bilhões e meio de dólares estavam em jogo. O locatário do World Trade Center tinha uma apólice de seguro que lhe dava direito a US$ 3,5 bilhões por evento destrutivo. Durante muitos anos, numa série de julgamentos dispendiosos, os advogados discutiram se o que aconteceu no 11 de Setembro foi um evento --porque um único plano foi executado-- ou dois eventos --porque dois edifícios diferentes foram atingidos. Nesse caso, como embalamos o fluxo de tempo nessas unidades que chamamos de eventos foi o pomo da discórdia. É outro exemplo --como a imprecisão do fim de um caso-- de como tomamos os acontecimentos no tempo e aplicamos a mesma atitude mental que aplicamos aos objetos no espaço. Todos os conceitos que aplicamos aos objetos --por exemplo, a diferença entre conceitos genéricos como "cerveja" e quantidades distintas específicas como "mais uma cerveja"-- se aplicam ao tempo.
McEwan - Qual foi a decisão?
Pinker - Eles acabaram em um acordo de US$ 4,25 bilhões.
McEwan - Parece muito britânico.
Pinker - Decidiram não resolver a questão sobre quantos eventos correspondiam a esse número. A matemática não faz sentido. Não sei se é possível ter um quarto de evento, se é um conceito coerente, mas acho que os argumentos semânticos pretendiam definir posições e basicamente forçar as negociações até um certo limite.
McEwan - Deixe-me citar algo do início de "O Material do Pensamento". Você diz: "A linguagem é uma janela para a natureza humana, que expõe características profundas e universais de nossos pensamentos e sentimentos. Os pensamentos e sentimentos não podem ser equacionados aos sentimentos propriamente ditos". Em outras palavras, acho que você está sugerindo que seu tema será a relação entre linguagem e realidade, como a linguagem abrirá para nós uma janela para nossas naturezas.
Podemos esclarecer uma coisa? Quando eu estava na universidade, aprendi, para usar esse verbo factivo, que Wittgenstein estava certo ao dizer que os limites do meu mundo são os limites da minha língua. Parece ser uma questão muito fundamental. Chomsky, e depois você --refinando muito Chomsky--, ao considerar como o pensamento realmente evolui, e por experimentação empírica, sugere que os modos como pensamos independem da linguagem. Pode esclarecer essa questão para nós antes de prosseguirmos?
Pinker - Bem, eu acho que o aforismo de Wittgenstein, provavelmente não o único de seus aforismos, realmente não resiste ao escrutínio. Os limites da sua linguagem não podem ser os limites do seu mundo. E não pode ser verdade que pensamos em nossa língua nativa, em inglês, japonês e assim por diante. Cheguei a essa conclusão pensando no problema da aquisição da linguagem. Como as crianças adquirem uma linguagem, para começar? Se suas mentes estão totalmente vazias de pensamentos, como elas interpretam os ruídos que vêm da boca de seus pais para decifrar o código da linguagem?
Aproveitando idéias desenvolvidas por outros na teoria da aquisição da linguagem, abordei o problema em termos de uma criança construindo uma situação, adivinhando o que o falante pretende, então, conectando sua interpretação do evento --à qual chegou não por meio da linguagem, mas de seus sentidos, de sua compreensão dos motivos das pessoas, de sua interpretação da situação-- à verdadeira seqüência da esquerda para a direita das palavras que escuta.
Se a criança não fosse capaz de interpretar o mundo em termos que se equiparassem aos da linguagem, como ela aprenderia a língua, para começar?
E, também, de onde vem a língua, para começar? Não é que tenha sido definida por um comitê e entregue a nós como um protocolo de uma linguagem de programa de computador. A língua é principalmente um fenômeno popular. As pessoas estão constantemente inventando novos termos, novos idiomas, tomando emprestado de outras línguas, produzindo sons que esperam que lembrem aos ouvintes uma determinada idéia. E muitas vezes temos momentos, como estou tendo agora, em que não conseguimos encontrar as palavras para dizer o que pretendemos, o que sugere que há algo que pretendemos, que precisamos das palavras para vestir --que o pensamento precede as palavras.
McEwan - William James tem uma descrição maravilhosa de como é esquecer a palavra que você procura. Ele diz que "você sabe tudo o que não é". Em outras palavras, você tem uma sensação muito clara da forma de uma coisa e sabe perfeitamente bem o que ela significa, mas ela está ali invisível, em uma rede de outras palavras que não servem.
Pinker - Realmente. Há todo um gênero recreativo de cunhagem de palavras para casos em que não apenas você não consegue encontrar uma palavra, como a palavra não existe. Os que conhecem o maravilhoso livro de Douglas Adams e John Lloyd "The Meaning of Liff" [O Significado de Liff"] saberão que eles pegaram um monte de nomes de lugares, de lugares aonde ninguém jamais precisará ir, e os utilizaram no lugar de palavras de que todo mundo precisa, ou conceitos de que todo mundo precisa.
McEwan - Minha favorita é "peoria": "o medo de não descascar batatas suficientes".
O que sugere que sempre podemos criar palavras quando temos significados.
Outra foi "abeline": em uma noite quente e insone, um abeline é aquele canto fresco do travesseiro que sua cabeça ainda não esquentou.
Pinker - Minha preferida é "hextable", que é o disco na coleção de uma pessoa que o convence de que você nunca poderá sair com ela. Durante anos vivi sob o terror de que minha cópia dos "Greatest Hits" de Gordon Lightfoot seria meu "hextable" [vocábulo em "The Deeper Meaning of Liff"].
McEwan - Você nunca mais vai trabalhar nesta cidade, digamos. O que nos leva a um interessante parêntese em seu livro: você diz que nada faz um lingüista revirar mais os olhos do que ouvir alguém dizer "o alemão é a única língua para fazer ciência" ou "o francês é uma língua maravilhosamente lógica" --ou coisas desse tipo.
Pinker - Bem, um dos motivos é que a língua é um alvo em movimento. Talvez seja verdade que, em uma determinada fase de uma língua, não se possa fazer muita ciência com ela, mas isso deve ter sido verdade sobre o inglês em certo momento ou sobre qualquer outra língua. Você muda a língua e empresta termos, inventa termos.
Um exemplo drástico foi o projeto maluco de reviver o hebraico no assentamento judeu na Palestina no fim do século 19. Como parte da ideologia, eles queriam se livrar do iídiche, a língua do gueto. Daí o hebraico, uma língua que não havia sido falada em conversação por milhares de anos.
Mas tinham de começar a falar sobre tratores, fazendas coletivas etc. E o fizeram. A língua mudou e continua mudando, como todas as línguas, e você consegue fazer o que precisa.
McEwan - Não foi Daniel Dennett quem estava chegando a isso por outro lado? Ele sugeriu que isso está muito bem, mas há coisas que não podemos pensar sem a língua, especialmente a solução de problemas. Quero dizer, o "mentalês" só pode levá-lo até certo ponto...
Pinker - Sim, acho que com certos conceitos, como os dias da semana, seria muito difícil.
Talvez não impossível, mas certamente seria difícil aprender o conceito de "semana" sem que lhe expliquem em uma língua. Mas acho que, mesmo aí, o que ocorre é pensamento. Não é que a língua seja implantada e lhe dê o conceito.
Acho que língua é o que você usa para explicar para outras pessoas um conceito que elas não poderiam captar de outra maneira --apesar disso, o que elas adquirem no fim desse processo não é apenas um trecho de linguagem.
Não é suficiente dizer "terça-feira" para entender o conceito de terça-feira. A palavra deve estar inserida em uma explicação que se baseia em uma compreensão muito maior do tempo, dos dias, de instituições sociais e assim por diante.
McEwan - Você descreve certas tribos que não contam além do número dois, o que é muito difícil entendermos. E você se pergunta por que isso ocorre, já que a língua é uma reação ao mundo e o mundo é cheio de coisas que são contáveis. Como isso pôde acontecer?
Pinker - Bem, eles existem. Acho que é bastante comum, não são apenas uma ou duas tribos. Pode até ser a maneira padrão de expressar números, algo que podemos até compartilhar com outros primatas --individualizar um, dois, três ou quatro objetos como um conceito de número, mas além disso é apenas "muitos".
Nós também temos a sensação aproximada de que um bando de aves é duas vezes maior que outro, sem ter a capacidade de contá-los individualmente.
Perguntei a um antropólogo que trabalhou com um desses povos, e ele disse: "Bem, eles não têm grandes números de objetos indistinguíveis, eles apenas os conhecem individualmente". Então, um caçador conhece cada flecha que ele fez. Não precisará dizer "Eu tenho sete flechas".
Ele conhece esta flecha, conhece aquela flecha e assim por diante.
É mais ou menos a mesma coisa quando não sabemos exatamente quantas pessoas há em nossa família toda se incluirmos todos os primos, pois conhecemos cada primo. Pensando bem, tenho a capacidade de contá-los, mas realmente não sei qual é o número, e é essa atitude mental que eles têm em relação a todas as suas posses.
McEwan - Então contar é uma invenção?
Pinker - Contar é uma invenção. Há basicamente duas coisas que são invenções. Uma delas é o sistema recursivo de números que nos permite dar um número preciso para grandes quantidades. Basicamente, nosso equipamento inato é uma capacidade de estimativa geral para grandes quantidades, e um conceito de número exato para pequenas quantidades até mais ou menos três. A conquista do sistema numérico literato ou ocidental é permitir que você aplique seu conceito de números exatos a grandes quantidades. Essa é a vantagem. Então o algoritmo para fazer isso é contar, que muitas vezes equiparamos a números, mas que não é a mesma coisa: contar é um pouco como quando você aprende divisões longas. Não sei se alguém ainda aprende divisões longas, mas eu aprendi --é uma técnica para obter um resultado. Contar é uma técnica para obter uma numerosidade. A técnica é memorizar, quando criança, um determinado trecho de linguagem --é quase como um pedaço de verso sem rima que guardamos na memória. O poema, por assim dizer, é "um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez" e assim por diante.
Agora, quando você tem um conjunto de objetos e quer saber sua numerosidade exata (em oposição a uma sensação geral de muito ou pouco), você recita o poema, voltando sua atenção para cada objeto em sincronia com a tônica do poema. Quando você diz "um", olha para um dos objetos (ou o toca); quando você diz "dois", olha para outro objeto, e assim por diante. Conforme você percorre os objetos, e o poema, toma cuidado para não focalizar o mesmo objeto duas vezes e para não deixar nenhum de fora. Quando chega ao último objeto, a palavra que você acaba de recitar (por exemplo, "nove") é a numerosidade do conjunto.
McEwan - Essa é a regra...
Pinker - Essa é a regra. É o algoritmo. Mas não é a mesma coisa que a faculdade numérica com que nascemos.
McEwan - Você disse que a maioria de nós tem a oportunidade de criar uma palavra, pelo menos uma vez na vida --dar nome a uma criança. E aqui topamos com um certo paradoxo, porque, quando o fazemos, temos a ilusão de estarmos simplesmente escolhendo um nome que nos agrada. Então descobrimos que fazemos parte de uma comunidade de pessoas que fizeram escolhas semelhantes, pessoas cujas escolhas, cedo ou tarde, vão parecer curiosamente datadas. Agora você se situou numa nação virtual de Steves, Steve Jones, Stephen Hawking, Steven Rose --eles se perfilam até o horizonte. Poderia refletir para nós sobre o que esse nomear nos revela a respeito de nós mesmos? E sobre essa aparente liberdade e ausência de liberdade?
Pinker - Sim, esse desconcertante constrangimento de nossa sensação de livre-arbítrio.
Freqüentemente se vêem pais que dizem "demos a nossa filhinha o nome de Madeline porque minha mulher tinha uma tia-avó que amava, chamada Madeline, e achamos que seria um nome singular". Então, vão à creche e descobrem que há três outras madelines ali.
Boa parte das hipóteses traçadas por pessoas que explicam por que nomes entram e saem de moda pode ser desmentida quando se analisam os dados cronológicos sobre o aumento e a queda na popularidade de nomes.
É fácil fazê-lo nos EUA porque a administração da seguridade social publica um banco de dados com todos os nomes que constam de seus registros, praticamente exaustivos desde a década de 1890. É possível passar muito tempo traçando o gráfico da ascensão e queda de seu nome favorito. Não sei se existe um banco de dados semelhante no Reino Unido.
A hipótese é que os nomes refletem tendências sociais. A razão pela qual houve uma alta nos nomes bíblicos nos anos 1970 e 1980 --Adam, Joshua, Sarah, Rachel-- teria sido a curva ascendente dos sentimentos religiosos. Mas não é verdade: no momento em que os nomes bíblicos estavam em ascensão, a observância religiosa estava caindo. Ou então as crianças recebem os nomes de celebridades reais ou fictícias, personagens de telenovelas, atrizes, cantores pop e assim por diante. Novamente, parece haver poucas ocasiões em que isso acontece. De acordo com meu colega Stanley Lieberson, que estuda essas coisas, o nome Darrin tornou-se muito popular no Reino Unido após a comédia "A Feiticeira" [o marido de Samantha tinha esse nome no idioma original], que foi importada no Reino Unido. Na maioria dos casos, porém, o nome do personagem da telenovela é escolhido na esteira de seu aumento de popularidade entre os pais, logo, ele reflete uma tendência, e não a provoca.
Em lugar de haver uma causa externa que resulta nas escolhas de nomes, o que acontece de fato é uma dinâmica interna, na qual a escolha de um nome em uma geração é causada pelas escolhas de nomes na geração anterior. Os pais reagem aos nomes que estão aí fora --nomes que são demasiado geriátricos, porque todas as pessoas das quais se lembram que os têm estão em lares de idosos. Ou nomes que são suficientemente velhos, talvez os nomes de gerações anteriores, de modo que parecem estar prontos para serem trazidos de volta. Também existem sons populares. Assim, quando Jennifer se tornou um nome popular, trouxe em sua esteira Jenna, Jessica, Jenny e assim por diante. E há muita imprevisibilidade. É um pouco como a bolha "pontocom" ou a tulipomania. Simplesmente há ondas de popularidade. O nome se torna popular demais, ou cai com um estrondo, e é isso o que aconteceu com Steve.
McEwan - Mas Steve vai retornar.
Pinker - Estarei morto.
McEwan - O clã McEwan --que é um clã minúsculo e muito obscuro que apenas fornecia poemas a outros clãs-- hoje é conhecido como um clã desfeito. De fato, acho que seu símbolo é um tronco de árvore cortado e deitado de lado. Mas o slogan escrito em letra miúda abaixo dele é "vamos retornar".
Em suas explorações da linguagem e da natureza humana, você fala sobre o que as pessoas fazem quando conversam. Quero citar suas palavras. Você diz: "Por que as pessoas não dizem simplesmente o que querem dizer? A razão disso é que parceiros numa conversa não são modems que descarregam informações nos cérebros uns dos outros. As pessoas são muito, muito sensíveis no que diz respeito a seus relacionamentos. Sempre que você fala com alguém, está presumindo que vocês dois têm uma certa familiaridade, algo que suas palavras poderiam modificar. Por isso, cada oração precisa fazer duas coisas ao mesmo tempo: transmitir uma mensagem e continuar a negociar aquele relacionamento." Um pouco mais tarde você busca um exemplo muito simples, muito comum, que me divertiu muitíssimo. Você queria que alguém lhe passasse o sal. Por que não dizemos simplesmente "passe o sal, me dê o sal"? O que mais precisamos fazer para negociar neste momento muito fugaz de troca?
Pinker - Por que dizemos "se você pudesse me passar o sal, seria fantástico"? Ou, na Inglaterra, vocês diriam "se você pudesse me passar o sal, isso seria brilhante" _palavra à qual, com os ouvidos de americano, ainda não consegui me acostumar nesse contexto. Há um capítulo inteiro sobre esse conjunto de fenômenos. Um pedido cortês é o exemplo mais simples de um ato de discurso indireto, que pode incluir ameaças veladas, subornos velados, insinuações sexuais. No caso do pedido cortês, por um lado você não quer tratar seu interlocutor como alguma espécie de subordinado ou ajudante a quem você possa dar ordens à vontade. Lançar um imperativo pressupõe que você pode esperar a aquiescência do interlocutor. E, com alguém com quem não tem muita intimidade ou a quem não é muito superior, a relação é delicada. Você não quer fazer com que pareça que vocês têm uma relação de dominante e subordinado, então, se disser "se você pudesse me passar o sal, isso seria brilhante", e, se seu interlocutor não supuser que você endoidou, ele conseguirá apreender o pedido subjacente às palavras superimpostas. O imperativo é transmitido, mas o relacionamento de não dominância é preservado.
McEwan - Preservado pela semântica?
Pinker - Sim, preservado pela forma superficial, que é coerente com o relacionamento mais seguro, sendo que é na mensagem subjacente que a comunicação de fato se realiza.
McEwan - Ok. Então, passando para o diálogo sexual, você evoca para nós uma charge de Thurber [cartunista da "New Yorker" nas décadas de 1930 e 1940] --só para mostrar há quanto tempo tudo isso acontece-- que mostra um homem ao pé da escada, no final da noite, dizendo à mulher com quem saiu: "Espere aqui, vou buscar as gravuras e as trarei para baixo". O que acontece quando um homem diz a uma mulher: "Suba comigo para ver minhas gravuras"?
Pinker - A coisa funciona em vários níveis. Um deles é que o homem não sabe se a mulher quer ou não ter um relacionamento sexual com ele. Vocês vão simplesmente sair para jantar ou ir ao cinema. Mas, embora o companheirismo seja o objetivo ostensivo da noite, o que faz dela um encontro é a possibilidade de um relacionamento sexual. No entanto, um relacionamento sexual e um relacionamento platônico são incompatíveis, de muitas maneiras. Tem que ser ou peixe ou frango. O homem não sabe quais são as intenções da mulher. Se ele dissesse diretamente, por exemplo, "quer subir e transar comigo?" e ela aceitasse, seria ótimo.
Se, por outro lado, ela disser que não, isso provocaria uma situação na qual já teria ficado claro que o interesse dele era de natureza sexual, e o dela, não.
Então teríamos uma emoção especial, à qual damos o nome de constrangimento, e que entra em cena em situações nas quais há um desencontro entre o relacionamento presumido por uma pessoa e o relacionamento presumido pela outra.
Uma maneira de evitar o constrangimento é formular a pergunta de maneira tal que um parceiro ou uma parceira interessados possam reconhecer a intenção --e assim consumar o "negócio"-- ou uma parte não interessada possa interpretar a proposta segundo seu enunciado declarado, com isso preservando o relacionamento que garante mais conforto a ambos.
Assim, há uma negabilidade plausível. Sartre apresenta uma versão desse cenário, uma parábola filosófica, em "O Ser e o Nada" (capítulo 2, "Má-Fé", seção 2, "Padrões de Má-Fé").
Essa também é a fonte por trás de tentativas veladas de suborno, do tipo "bem, sr. policial, será que existe algum jeito de resolvermos essa multa sem muitos problemas?".
McEwan - Explique melhor o suborno, porque parece que sedução e suborno têm alguma espécie de relação semântica.
Temos o policial de trânsito que já colocou o papel da multa no seu carro, e você não sabe se ele é corrupto ou não. Então como faz para lhe oferecer uma propina?
Pinker - Bem, isso realmente tem certa importância prática.
O problema de dizer "se eu lhe der dez libras, o sr. me deixa ir embora?" é que você não sabe quais são as intenções do policial. Você pode estar correndo o risco de ser preso por tentativa de suborno, cujo custo seria muito maior do que o da multa.
Há uma cena de "Fargo" [dos irmãos Coen] da qual alguns de vocês talvez se recordem: se o policial lhe pede para mostrar sua carteira de habilitação e você abre sua carteira, com o documento exposto e uma cédula de US$ 50 ligeiramente para fora, e então diz "será que existe algum jeito de resolvermos isso agora mesmo?", o policial corrupto pode aceitar o suborno, enquanto o honesto não terá como provar a tentativa de suborno num tribunal.
Na "Gourmet Magazine" foi publicado um artigo interessante em que um editor desafiou um crítico de restaurantes a ver se conseguiria, pagando propina, um lugar nos restaurantes mais exclusivos de Manhattan sem reserva anterior --se o maitre lhe encontraria uma mesa imediatamente em troca de uma nota de US$20.
O interessante foi que, em primeiro lugar, o crítico de restaurantes espontaneamente recorreu a um eufemismo --"me pergunto se não teria ocorrido algum cancelamento no restaurante"-- enquanto segurava uma cédula de US$ 20 discretamente, com a mão virada para baixo. Ou então ele dizia "esta é uma noite realmente importante para mim".
A outra coisa interessante é que esse método funcionou todas as vezes --todos os maîtres são subornáveis.
McEwan - Mas em todos os casos, o jornalista o fez de tal maneira que pudesse plausivelmente negar que estivesse oferecendo propina.
Pinker - As chaves principais deste quebra-cabeça são a lógica-teórica-de-jogo da negabilidade plausível e o fato de que os desencontros de relacionamentos na vida social podem provocar constrangimento. Hesitamos em pagar um custo, mesmo que o custo não seja sermos presos ou multados.
A possibilidade de alguém recusar um convite para um encontro sexual ou de um maître de restaurante responder, indignado, "em que espécie de estabelecimento o senhor acha que se encontra?" nos apavora tanto que é comparável à possibilidade de sermos presos.
Mas existe outra parte também. Apesar de todas as glórias da linguagem, parece que fomos constituídos de maneira a sentir que existem áreas nas quais a linguagem é inapropriada. Ela é inapropriada, especialmente, num relacionamento comunal, um dos três tipos de relacionamento humano identificados pelo antropólogo Alan Fiske. O relacionamento comunal engloba relacionamentos no interior de uma família, como a de marido e mulher, ou de namorado e namorada, de amigos muito íntimos ou de um grupo de amigos muito ligados entre eles. Esse tipo de relacionamento, no qual você compartilha de maneira indiscriminada, sem exigir reciprocidade, e onde as pessoas sentem-se como uma unidade só, tende a não ser negociado por meio da linguagem. Um pai ou mãe não articula em palavras todas suas responsabilidades parentais para com seu filho, ou vice-versa. Quando dois amigos se encontram, eles não dizem "vamos concordar em tomar uma cerveja juntos pelo menos duas vezes por semana, e, se você algum dia precisar de dinheiro, eu lhe darei um empréstimo, e se eu algum dia for ao hospital, você me visitará, e aqui está o contrato de nossa amizade". Cimentamos nossos relacionamentos íntimos, românticos e sexuais com outras formas de comunicação --pelo contato corporal, abraços, apertos de mão, carinhos, sexo, tapinhas nas costas. Isso vai depender do relacionamento. Refeições comunais são um ritual importantíssimo de união em todo o mundo e, é claro, constituem parte essencial de um encontro romântico. Quando vocês compartilham uma refeição, é quase como se fossem feitos da mesma matéria. Ao comer a mesma matéria, como vocês são o que comem, vocês se tornam a mesma matéria.
Com frequência há rituais de sangue, cortar os dedos e deixar o sangue das duas pessoas se misturar. Assim, para cimentar um relacionamento íntimo dependemos de uma noção quase folclórico-biológica de fusão de essências. E a linguagem não apenas não está à altura dessa tarefa como pode até mesmo subverter o relacionamento. Qualquer pessoa que formulasse precisamente em palavras os termos de seu relacionamento romântico não estaria compreendendo a essência de um relacionamento romântico.
McEwan - Não, a gente não quereria dizer "por que estamos na ópera?"
Pinker - Isso mesmo.
Espero não constrangê-lo se falar sobre seu livro mais recente, "Na Praia", um romance perturbador. É, sob muitos aspectos, um romance sobre a linguagem, por meio de sua ausência. Um casal recém-casado está paralisado, incapaz de transmitir em palavras seus sentimentos atuais sobre a consumação do casamento.
A trama, em grande medida, gira em torno da incapacidade de usar a linguagem. Senti-me encorajado pelo fato de as primeiras palavras do livro serem "eles eram jovens, instruídos, e ambos eram virgens naquela, sua noite de núpcias, e viviam numa época em que conversar sobre dificuldades sexuais era pura e simplesmente impossível. Mas nunca é fácil".
Então, o livro é ambientado numa época em que falar de sexo abertamente era tabu.
Mas fiquei contente quando você acrescentou que isso nunca é fácil. O fato de nunca ser fácil reflete a idéia de que a maioria dos relacionamentos íntimos serem relacionamentos que não negociamos com palavras. Isso pode levar a grandes tragédias. Nós nos forçamos a empregar palavras para expressá-los, mas isso não é fácil. E, se eu puder me aprofundar mais um nível, acho que a razão disso, em última análise, é que os relacionamentos comunais --as alianças, famílias, casamentos-- são coisas em que, para você se comprometer, existe a vantagem de elas serem involuntárias, emocionais, viscerais.
Você se comprometeria por alguém, tornando-se passível de ser abandonado ou traído? Como você convence alguém a se comprometer, em vista do risco que a pessoa incorre?
Se você calcula isso enquanto está no relacionamento, poderia calcular também por que não vale mais a pena estar nesse relacionamento. Acho que é importante convencer a outra parte de que isso é algo que o acometeu, que você sente em seu âmago, que não é racional. Acho que é por isso que temos uma fobia de articular isso em palavras --algo que, é claro, está vinculado à parte racional do cérebro, aquela que toma decisões. Quando palavras são trocadas nesses relacionamentos comunais, freqüentemente são fórmulas, não são discursos articulados compostos especificamente para a ocasião. São coisas como orações, que são iguais a cada vez, quase como comportamentos em lugar de serem conversas, como juramentos de fidelidade. "Juro fidelidade à bandeira, blablablá", "eu te amo", "te amo também"-- esse tipo de troca, que não é uma conversa, é na realidade um tipo de comportamento. É o único tipo de linguagem que toleramos.
McEwan - E não se diz por quanto tempo, não é mesmo? Mas se quer dizer "agora e para sempre".
Pinker - E é o ato de dizê-lo e de ouvir a recíproca que consolida a emoção --não o teor exato do que se diz, como proposição.
*
Perguntas do Público
Mulher - O que acontece quando xingamos e usamos linguagem chula? É violência verbal, é subversão --o que acontece nesse momento?
Pinker - É um tipo de violência verbal. Fico satisfeito por você ter levantado essa questão. Na realidade, é uma continuação desse último pedaço de conversa, porque, é claro, a incapacidade de falar de sexualidade e outras áreas é uma espécie de tabu, e, quando existem palavras determinadas para falar disso, elas tendem a se tornar tabus também. Com freqüência palavras usadas para falar de temas altamente carregados, como sexualidade, excreção, divindades, pessoas desfavorecidas --quer sejam inimigos, infiéis, aleijados, minorias desprezadas--, morte e doenças, temas que despertam emoções negativas fortes, tendem a ser tabus, também. É claro que isso não pode ser o único ingrediente da linguagem chula, já que temos eufemismos que são perfeitamente aceitáveis para tratar de todos esses temas.
Podemos falar em copular ou em fazer amor, em fezes, no Todo-Poderoso --portanto, não é apenas o significado do termo. Mas embutida no termo tabu está a mensagem implícita de que estou usando esse termo para fazer você pensar nos aspectos mais contenciosos ou desagradáveis do fenômeno. Longe de tentar ocultar alguma coisa, que é o que fazemos quando empregamos eufemismos, estou impondo a coisa a você, algo que às vezes descrevemos como disfemismo. Assim, no cerne da linguagem chula está a intenção de forçar o ouvinte a experimentar um pensamento desagradável por meio da linguagem. O poder emocional que as palavras podem ganhar por esse caminho as torna adaptáveis a uma série de outras formas de xingamento.
Existem usos mais idiomáticos ou não literais dessas palavras, como em "foda-se", por exemplo. E há expressões idiomáticas estranhas que não fazem nenhum sentido sintático ou semântico, como "close the fucking door" [feche a maldita porta, ou, literalmente, a "porta fodida"], ou "what the fuck is going on" [literalmente, o que foda está acontecendo?], em que é completamente obscuro o que essa palavra está fazendo nessa construção.
McEwan - Para os interessados, eu acrescentaria que existem várias páginas escritas sobre a semântica complexa de "shut the fucking door". Mas, apenas para dirimir dúvidas, sei que todos irão pensar: o sexo é também fonte de prazer enorme, então como se explica o fato de ter uma conotação tão negativa e automática em xingamentos?
Pinker - É uma pergunta interessante. Às vezes, quando apresento essa idéia, as pessoas dizem: "bem, como o sexo se enquadra nessa lista? Não é algo positivo? Então porque é negativo?" É claro que o sexo pode ser positivo, com adultos que consentem, mas essa é provavelmente uma fração pequena dos cenários sexuais que podemos imaginar acontecendo. Também existe a exploração sexual, a possibilidade de ilegitimidade, a possibilidade de traição, de infidelidade, de estupro, de abuso infantil, então, se pensarmos em toda a gama da experiência sexual humana, há muitas emoções desagradáveis que ela pode suscitar, e acho que é isso que carrega a linguagem sexual de seu senso de tabu.
Mulher 2 - Quero voltar à questão dos verbos irregulares. Já me pareceu muitas vezes que, em todas os idiomas que tentei aprender, "ser" e "ter" são os verbos mais irregulares, e são também os mais pessoais. Isso é significativo, ou estou deixando de entender o que é mais importante?
Pinker - Bem, não; bem, sim e não. É comum que verbos como "ser", "ter", "ir", "fazer" e "dizer" sejam irregulares em várias línguas. Acho que a razão principal disso é a freqüência, porque os verbos irregulares dependem da memória. Quanto mais você ouve alguma coisa, melhor se recorda dela. Para que alguma coisa permaneça numa língua como irregular, ela precisa ser usada com freqüência suficiente para que todas as gerações tenham muitas oportunidades de ouvi-la no tempo pretérito. Verbos que são ou muito genéricos, como "ser" e "ter", ou que são auxiliares, que são postos em uso secundário para expressar tempo, modalidade, negação e assim por diante, nós ouvimos com tanta freqüência que eles podem se dar ao luxo de sobreviver em formas altamente irregulares. Então essa é a resposta curta.
Homem - Steven, em seus comentários você fez referência à contagem e à habilidade em lidar com números, à frase "faculdade inata de lidar com aritmética". Minha pergunta --e é uma pergunta importante-- é: existe nas crianças, e na verdade em todos nós, uma faculdade inata de lidar com a palavra escrita que pode ser encorajada ou ignorada?
Pinker - É provável que essa faculdade não exista. E é provável que não exista uma faculdade inata de lidar com números, no sentido da aritmética ou contagem formais. Parece que somos inatamente incapazes de apreender quantidades exatas superiores a mais ou menos três. Em comum com outros primatas, como eu disse. As escolas são importantes porque ensinam coisas tremendamente úteis e valiosas para as quais não possuímos faculdades inatas --sendo que ler e escrever é uma, e contar e fazer matemática simples é outra.
Homem 2 - No podcast de ciências da sexta-feira você falou do ciclo de "feedback" entre a linguagem que usamos e o modelo de mundo que usamos para construir os pensamentos que, em seguida, exprimimos em nossa linguagem. Você disse, resumindo, que a linguagem não move o mundo, mas que a coisa se dá mais no sentido inverso. O que me deixa perplexo é como temos modelos de mundo distintos. Estou casado há quase 30 anos, e há momentos em que converso com minha mulher e acho que estou me comunicando com um membro de uma espécie de outro planeta. Tenho formação técnica científica. Tenho um modelo de mundo bonitinho, claro, hierárquico, estruturado, que pode ser atravessado com clareza. Enquanto isso, acho que o modelo de minha mulher se assemelha mais a uma tigela de espaguete, e a travessia dele --estou sendo politicamente incorreto-- é um pouco como andar entre montanhas espaciais. Sabe, andar no escuro, percorrendo um caminho cheio de voltas e reviravoltas.
Pinker - Podemos ouvir a visão de sua mulher?
Homem 2 - Eu não a trouxe aqui. Será que você poderia comentar sobre como temos esse modelos de mundo diferentes? Porque me parece que é isso que está na origem de muitos problemas de comunicação.
Pinker - Modelos de mundo distintos? No sentido em que, para interpretar esse discurso indireto, abrangendo desde pedidos corteses até ofertas veladas de suborno, você se baseia numa teoria de fundo da psicologia de seu interlocutor, você entra na teoria implícita do que está acontecendo na cabeça da pessoa que fala. Existem certas coisas que se podem presumir em relação a praticamente todo mundo. As pessoas querem certas coisas, elas sabem certas coisas. Quando você está enganado, quando simplesmente não conhece a outra pessoa --porque ela vem de uma cultura diferente, ou porque possui manias pessoais, ou porque é membro do sexo oposto--, então podem ocorrer falhas na comunicação, falhas que podem ser inadvertidas ou, no caso do depoimento de Clinton, a título de exemplo, propositais, em que você contesta ou não apreende todo esse conhecimento de fundo que é empregado na interpretação de um dito indireto.
É também essa a razão pela qual não temos sistemas muito bons de compreensão de linguagem por computadores. O problema não está tanto em programar o computador com a gramática e a linguagem do inglês, mas em programar o computador com o bom senso que é necessário para ler nas entrelinhas --algo que fazemos sem qualquer esforço e que requer o conhecimento do interlocutor. Seria preciso, basicamente, programar o computador com o conteúdo integral do senso comum humano, para que ele pudesse fazer a leitura nas entrelinhas que todos nós realizamos sem qualquer esforço.
Mulher 3 - Será que temos uma boa chance de negociar nossos relacionamentos com êxito quando falamos uma língua estrangeira?
Pinker - Você se refere especificamente à diferença entre homens e mulheres, ou apenas às diferenças que ambos os sexos têm?
Mulher 3 - Não, estou falando de línguas estrangeiras. Se falamos numa língua estrangeira.
Pinker - Uma língua estrangeira, literalmente? Por exemplo, se o homem é húngaro e a mulher é francesa, ou de maneira geral?
Mulher 3 - Não, quero dizer de maneira geral. Por exemplo, se sou alemã de nascimento e falo inglês, será que tenho uma boa chance de negociar um relacionamento com sucesso?
Pinker - Eu diria que sim. Se bem que, como não tardam a descobrir os diplomatas, empresários e viajantes, sempre possam ocorrer falhas de comunicação quando se fala outra língua. Por exemplo, se você não conhece o nível básico de cortesia e trato indireto que é de praxe em uma cultura como a do Japão, onde se espera muito trato indireto e muita cortesia. Se você é de outra cultura, como a americana, em que as pessoas vão diretamente ao ponto com muito mais rapidez, não terá consciência do que se espera de você, e podem ocorrer falhas de comunicação.
Se você não tiver consciência daquela outra parte específica, pode haver falhas de comunicação. Também há a dificuldade universal de que algumas coisas simplesmente são difíceis de formular em palavras em qualquer idioma, como é o caso de um relacionamento sexual como o que é apresentado em "Na Praia", onde nem mesmo o fato de as duas pessoas falarem a mesma língua lhes possibilitar superar a barreira das coisas sobre as quais não conseguem falar.
Mulher 4 - Será que Ian, como romancista, poderia nos dizer até que ponto a reflexão está envolvida na escolha dos nomes de seus personagens?
McEwan - Não tanto quando algumas pessoas gostariam. Não sou daquela escola de escritores que acham que dar nome a um personagem significa imbuí-lo de um conjunto de significados. O que faço é sair à cata de nomes. Por que os nomes acabam me atraindo? Porque não conheço ninguém que tenha aquele nome, ou conheço poucas pessoas. Eu acharia difícil escrever um romance cuja heroína se chamasse Annalena, porque esse é o nome de minha mulher. Logo, preciso ter certo grau de não-familiaridade. Mas eis um nome para você, Steven. Acrescento isso para seus arquivos, mas é possível que já esteja presente neles. Quando eu vivia em Oxford e minha mulher morava em Londres, aprendemos com John Bayley, um acadêmico de Oxford, uma palavra que podia ser um nome para nosso relacionamento: "telegamia".
Pinker - "Telegamia." É excelente.
McEwan - E começamos a constatar que era uma palavra muito útil para designar parceiros que vivem separados. Eles têm um relacionamento telégamo. Assim que dizíamos isso com relação a pessoas, sabíamos que isso implicava em trens, horários do rush, fins de semana e todas as complicações decorrentes. De quando em quando, então, surge uma palavra para preencher uma brecha. Mas, como você disse, mesmo com uma cultura de palavras criativa e dinâmica como é a americana, ninguém propôs uma palavra para designar a década que estamos vivendo, e isso me parece muito decepcionante. Se esta não é a década dos zeros, o que é?
Pinker - Sim, os zeros. É como o caso da palavra para designar parceiros heterossexuais não casados. Não existe uma palavra perfeita...
McEwan - Nem mesmo "parceiro" parece...
Pinker - Veja bem, quando me refiro a meu par, tenho que acrescentar "por falar nisso, não sou gay" _não que houvesse algo de errado nisso.
Esta é uma transcrição editada de evento promovido no Festival de Literatura de Cheltenham 2007, patrocinado pela Fundação Wellcome. Este texto foi publicado na revista inglesa "Areté".
Tradução de Clara Allain e Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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