Domingos Oliveira se alimenta de arte para criar sem parar
Domingos é ator. Domingos é cineasta. Domingos é diretor de teatro. Domingos é escritor. Domingos Oliveira tem 72 anos e acha que a internet nos torna mais próximos de Deus. Domingos casou cinco vezes e teria casado mais cinco. Domingos dança, vai ao cinema, escreve um blog e pensa sobre o amor, que é o seu destino. Domingos é contra a morte. Todo dia é dia de Domingos.
Ele nasceu no Rio de Janeiro e se chama Domingos José Soares de Oliveira. Começou cedo na carreira artística, aos 12 anos, no papel de cardeal português na peça "A Ceia dos Cardeais", de Julio Dantas. Mas, apesar de dizer que este foi o começo, aos 12 anos ele ainda estava na escola e era cedo demais para escolher uma carreira. Tão cedo que decidiu fazer engenharia na faculdade.
Fernando Moraes/Folha Imagem |
Domingos de Oliveira diretor do filme "Todas as Mulheres do Mundo" |
Dessa experiência ele não tem boas lembranças --e, pelo que conta, a faculdade também não tem boas lembranças dele. Brigou com um professor a tal ponto que seus pais foram chamados na reitoria para serem comunicados de que seu filho era um elemento perigoso e subversivo. Não à toa ele não deu um passo em tal carreira. Aos 21 anos casou-se com Eliana, uma moça que pintava. O casamento não durou, mas abriu ao projeto de engenheiro todo um novo mundo. Ele vinha de uma casa onde não se lia muito, onde não se falava muito de cultura. O pai de Eliana, porém, adorava arte e literatura, e insistiu em apresentar o então genro a Beethoven e Nietzsche. Foi também o primeiro a reconhecer Domingos como artista, depois que este escreveu um poema e decidiu arriscar a sorte mostrando-o ao sogro. Foi um pontapé na engenharia.
Dois anos depois de formar-se engenheiro Oliveira decidiu fazer um curso de teatro com um diretor norte-americano. Foi o empurrão que precisava para fazer a sua própria peça, que estreou na varanda de seu apartamento: "Somos Todos do Jardim de Infância" foi um sucesso de crítica em 1963, e mostrou ao jovem diretor que ele tinha fôlego. De sobra. Um ano depois ele já lançava "A Estória de Muitos Amores" e foi convidado para trabalhar na TV Globo. Entusiasmado, ele aceitou, para deixar a televisão em 1966, quando descobriu as inúmeras possibilidades de fazer cinema. Encantou-se. A essa altura já tinha casado e se separado de sua segunda mulher, a atriz Leila Diniz (1945-1972).
Foi numa tentativa de buscar reatar o romance com ela que Domingos dirigiu o filme "Todas as Mulheres do Mundo", que o consagrou como diretor. Para tentar consertar o que ele chama de uma "separação clássica" --um homem que quer se separar mas não tem coragem, e inferniza tanto a mulher que ela acaba se decidindo pela separação-- inventou um filme para que eles se reaproximassem. Neste o erro foi corrigido, já que eles terminavam juntos no final feliz da história. Mas eles se separaram sem nenhum motivo em particular; nas sem razões do amor de Oliveira, os jovens se separam porque são jovens e têm muito para experimentar antes de se comprometer definitivamente.
Depois do primeiro filme seguiram-se outros, quase imediatamente: "Edu, Coração de Ouro" (1968), "As Duas Faces da Moeda" (1969), "É Simonal" (1970) e "A Culpa" (1971). No início da década de 1970, decidiu voltar a trabalhar na TV Globo, fazendo documentários e adaptações de comédias. Apesar do sucesso, essa também foi uma época mais terrível --o ano de 1972 fez a adaptação para a televisão de "Somos Todos do Jardim de Infância', e trouxe também a morte de Leila Diniz, em um desastre aéreo. Foi nesse momento que Oliveira se declarou opositor da morte. Não foi ao enterro dela, e até hoje só vai a esse tipo de cerimônia quando sua presença é indispensável para alguém que esteja vivo.
Ele é simplesmente contra a morte e qualquer ritual que a envolva, e diz que um homem que diga que aceita a morte está mentindo --seria o contrário de querer viver, e viver, segundo ele, é bom demais.
Apesar do sucesso, ele lembra dessa fase como um momento de dívidas, de problemas financeiros, de idas ao banco. A esta altura estava em seu terceiro casamento, com Nazareth Ohana. Que começou e terminou rápido. Em 1973 estava separado e novamente casado com Lenita Plonczinski. Com ela teve sua única filha, a atriz e escritora Maria Mariana. Trabalhava com Daniel Filho na Rede Globo, adaptando séries e mesmo dirigindo episódios, quando decidiu dedicar-se ao teatro.
Foi um retorno aos 12 anos, e que só comprovou a versatilidade de Oliveira, que trabalhou como diretor, autor e ator. Dirigiu Marília Pêra em "Adorável Julia" e foi premiado como melhor autor por "Assunto de Família', numa montagem que foi dirigida por Paulo José e teve no elenco Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. Em 1978, ele viveu a morte da terceira ex-mulher e, um ano depois, separou-se de Lenira. Entre 1980 e 1981, viveu o que descreve em seu blog como uma fase de "muitos conflitos e casos amorosos, até o encontro com Priscilla, no final de 1981". Ele se refere à Priscilla Rozenbaum, sua quinta mulher --e que resiste até hoje. Se não resistiu às mulheres, também não resistiu ficar longe da televisão por muito tempo, e em 1989 retornou à Rede Globo. Trabalhou na equipe do programa "Fantástico", transformou "Todas as Mulheres do Mundo" em minissérie e atuou em outras produções da emissora. Ao todo foram quase 21 anos de trabalho na Globo, com fugas para explorar as outras artes.
Em 1992, Oliveira recebeu um convite para dirigir o "Teatro do Planetário", onde colocou em cartaz diversas peças escritas e dirigidas por ele. Essa nova fase foi marcada pela peça "Amores", que recebeu o prêmio Shell, pelo sucesso de "Confissões de Adolescente" (peça baseada no diário de Maria Mariana e que depois levaria à criação da série homônima na TV Cultura), e por "Todo Mundo Tem Problemas Sexuais', a 44ª peça de sua carreira. Ele descreve esses anos de sua vida como uma grande fase.
Em 1998, quando retornou ao cinema com "Amores", foi para não largar mais a sétima arte. Até os dias de hoje ele dirige ou atua numa média de um filme por ano, e não tem a menor intenção de parar. Está ligado à cerca de 150 títulos estreados, entre peças, filmes e produções televisivas. Hoje, ele tem fôlego para três peças em cartaz: "Confronto", de temática política; "O Apocalipse Segundo Domingos Oliveira', que ele definiu como filosófica; e "Todo Mundo Tem Problemas Sexuais", que trata de algumas de suas temáticas favoritas --o amor, o sexo, os desencontros, as amizades.
Define-se como alguém que "tem muitos amigos e é muito popular", e que "nunca trabalhou em nada que não gostasse". Ao menos é o que afirma em seu blog quando, horrorizado com um pedido de entrevista, decidiu fazer uma síntese de sua vida dividida em fases para facilitar a vida dos jornalistas ("achei que só a lua fizesse isso", diz), estas marcadas por mulheres e trabalhos. O resultado é uma curta autobiografia, talvez um começo daquela que ele não sabe se algum dia vai escrever.
A proliferação de trabalhos o coloca como um dos cineastas, dramaturgos, escritores, atores, de maior sucesso de sua geração. Mas também o coloca no centro de diversas polêmicas e controvérsias. A primeira delas, e talvez a mais forte, é aquela relativa aos temas que escolhe. Não são particularmente polêmicos em si, mas o foram na época em que Oliveira começou a produzir. Ele fala de amor, principalmente. Seus trabalhos já foram definidos --mais de uma vez-- como eternas discussões de relacionamento, e ele não nega. Acha os relacionamentos a coisa mais interessante do mundo e as emoções o assunto mais importante. Muito mais do que política, pobreza, ou qualquer um dos temas que estava em pauta para a geração do Cinema Novo durante o período da ditadura militar (1964-1985) no Brasil.
"O cinema novo foi um movimento muito limitado artisticamente pela proposta política. Era um grupo de intelectuais, muito bem intencionados, às vezes muito talentosos, mas nunca escreveram sobre suas vidas ou sobre as vidas dos amigos, sobre as coisas que entendem bem e podiam falar com profundidade. Trabalharam o tempo todo sobre um tema que conheciam pouco", disse em entrevista à Folha de S. Paulo (só para assinantes da Folha e do UOL). Seus filmes lhe deram o descontentamento dos colegas e um certo apreço da parte dos militares --ele nunca parou de produzir. Isso não quer dizer que não se importe com a política ou que não se interesse, mas apenas que considera as relações humanas um assunto infinitamente mais importante e interessante.
Para ele, quando uma pessoa conversa a sério com outra vai sempre falar em relacionamentos. É o tema da entrega, da confiança. Talvez por isso é que apenas os programas que fez para a televisão --e alguns, não todos-- é que tenham versado menos sobre esse assunto. E a TV passa longe de ser sua forma de expressão favorita. "Na TV não se pode errar. Quem não pode errar não pode acertar. É simples assim. Todos os atores representam a medo, a cautela, ou seja, representam mal pra caramba, com raras exceções, dos que conseguem perder o medo de errar", disse à Folha.
Em seus filmes é peças é visível o quanto o diretor transita por erros e acertos --tanto de seus personagens como dos próprios trabalhos. Oliveira, talvez pela idade, talvez pela personalidade, é daqueles que critica e elogia seu próprio trabalho. Sabe dizer que um filme é o pior de sua carreira, como faz com "Teu, Tua", mas também não poupa elogios ao que considera bom. Gosta de controlar a direção de um trabalho seu, detesta ver seus textos dirigidos por outros e diz que atua para ter um ator a menos para dirigir.
Esse homem que acredita que mulher é uma cultura não pensa em parar tão cedo. Quer manter a produção de um trabalho por ano, e diz que isso é natural. O que não é natural é ter tantas ideias e saber que não vai ter tempo para conclui-las. Ele acorda cedo e já começa a produzir meia hora depois. Tem no computador uma pasta chamada "Legado", onde guarda as ideias que acha que não vai ter tempo de realizar. É um otimista que acha que a humanidade vai encontrar novas ilusões e novos sonhos. Diz acreditar que o destino dos homens é amar, sabendo que o amor não traz paz nem felicidade, estes são os atributos da solidão.
Assume a paixão como poucos: Oliveira não tem vergonha de dizer que seu trabalho é menos reconhecido do que deveria, que é capaz de fazer algo sublime (apesar de não ter conseguido com "Juventude" (2008), seu filme mais recente, e que, como artista, não encontrou ainda a sua única obra. Não hesita em dizer que um diretor estreante, que faz um filme elogiadíssimo pela a crítica, se parece com ele (Matheus Souza, diretor de "Apenas o Fim", 2009). E é duro quando escreve em seu blog sobre a Lei Rouanet --num texto só de letras maiúsculas [que significa irritação ou que a pessoa está gritando].
Oliveira não é conciso. Oliveira não cala. Oliveira é despudorado como seus filmes. Mas transforma a fala, o despudor, o olhar sobre a vida em arte. Ama as mulheres e elas são seu mote. Pretende, talvez um pouco como o Deus que interpreta em "O Apocalipse Segundo Domingos Oliveira", entender o inexplicável universo das relações humanas. Se ele consegue, cabe ao público decidir. Mas que ele não desiste, isso é fato. Afinal, todo dia é o dia --único-- de Domingos Oliveira.
Fontes: Domingos de Oliveira; Filmespovo; UOL; Gramado; Multiply; Moviola
Livraria da Folha
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