Em novo livro, Francisco Alvim se equilibra entre o lírico e o cotidiano
Sem publicar desde 2000, quando lançou "Elefante", Francisco Alvim, 72, explica que seu processo literário é lento e indisciplinado. "Preciso de tempo para perceber consistência no que escrevo", disse em entrevista à Folha, feita por escrito a seu pedido --cuja íntegra segue abaixo deste texto.
Poeta consagrado e diplomata aposentado, ele avalia que "O Metro Nenhum" (Companhia das Letras) se distingue de seus outros livros "por ter suas raízes numa etapa tardia da vida".
E o que o aproxima dos outros? "É estar imerso no fluxo do tempo, do meu tempo, presente em todos eles."
Alheio à urgência contemporânea, o tempo de Alvim é de outra ordem.
"Nunca me impus prazos. O tempo de cada publicação foi se formando naturalmente, de acordo com as circunstâncias, oportunidades e, sobretudo, com a chegada do momento em que o livro apareceu, feito e acabado."
O território livre dessa poesia não está a salvo de dísticos. Alvim continua a ser, na feliz definição do poeta Cacaso ecoada pelo crítico literário Roberto Schwarz, "o poeta dos outros".
"Meus livros acompanham de perto o que vou vivendo. Têm um forte lastro de minha experiência pessoal, o que não significa que se atenham a ela. Partem dela para chegar à do outro, para imaginar, sentir e pensar a do outro."
É também equilibrista entre lirismo e mordacidade, desesperança e prazer sacana --ou a Face Preta e a Face Amarela, como define Zuca Sardan na orelha do livro.
Não está certo de que "O Metro Nenhum" --por onde desfilam tremuras, fragilidade e ruína, mas também pilhéria da miséria miúda cotidiana, luz, sexo e evocação à poesia e a Drummond-- seja uma obra desesperançosa.
"É. Mas talvez também não seja na medida em que o poema 'Através', que fecha o livro, ecoe por todo ele. Um eco amoroso, difuso, que não discrimine nem privilegie coisa alguma e não deixe de fora a finitude e a doença. Sou, ademais, um admirador da arte dos velhos, para começar pela do meu pai, entalhador, cujos cortes na madeira foram se tornando cada vez mais apagados, uma bruma."
O poema citado, o último de "O Metro Nenhum", começa com os versos: "Vê se consegue outra source of supply/ Um pouco mais de tempo para conhecer-nos/ Monte Carlo em novembro/ Tenha um bom (have a nice) weekend/ Goodbye".
E termina assim: "Viu, lá fora?/ A gaivota!".
No fim, o clarão.
*
Como situar "O Metro Nenhum" na tua obra poética? O que o distingue dos teus demais livros? E o que o aproxima deles?
Francisco Alvim - Meus livros acompanham de perto o que vou vivendo. Têm um forte lastro de minha experiência pessoal, o que não significa que se atenham a ela. Partem dela para chegar à do outro, para imaginar, sentir e pensar a do outro. Assim, penso melhor a minha. Cada período de vida marca um tempo da escrita. O que distinguiria "O Metro Nenhum" é o ter suas raízes numa etapa tardia da vida. O que o aproxima de meus outros livros é estar imerso no fluxo do tempo, do meu tempo, presente em todos eles.
O intervalo entre teus últimos livros é de 11 a 12 anos. Qual o tempo da poesia? Quando um livro de poemas está maduro para ser publicado?
Nunca me impus prazos para publicar. O tempo de cada publicação foi-se formando naturalmente, de acordo com a circunstâncias, oportunidades e, sobretudo, com a chegada do momento em que o livro apareceu, feito e acabado. Mas posso dizer que meu processo para chegar ao livro é lento. Escrevo pouco e de modo bastante irregular, sem disciplina alguma. Preciso de tempo para perceber consistência no que escrevo. Gosto de publicar em revistas e suplementos nos intervalos. É uma prática que me permite identificar os núcleos de poesia que vão sendo conquistados e ajudam a ver para onde vai caminhando o livro.
Sérgio Lima/Folhapress | ||
O poeta e diplomata aposentado Francisco Alvim, que lança o livro "O Metro Nenhum" pela Companhia das Letras |
Os títulos continuam sendo parte poderosa e indivisível dos teus poemas. Alguns poemas não existiriam sem seus títulos. Qual o papel do título na poesia? Quanto de um poema está no título?
Os títulos frequentemente orientam a leitura do poema ou o "batizam" ao gosto e sentimento do autor. Constituem portanto um elemento em boa medida externo a ele. Contudo, quando se tornam parte integrante, indivisível, do poema, compartilham um recurso característico e poderoso da poesia --o da polissemia. Então reforçam a carga de significados múltiplos a que todo poema deve aspirar e contribuem para fazer dele um campo de possibilidades.
- No poema "A Poesia", de onde saiu o verso que dá título ao livro, você evoca Drummond. Qual a influência dele na tua obra?*
Imensa. Drummond está sempre presente no que escrevo. Neste "O metro nenhum" um poema meu chega a contracenar com um dele. Quanto ao título, é o verso de um dos poemas do "Metro", que parte de uma observação banal que fez numa entrevista de muitos anos atrás sobre o exercício tolo mas muito humano de sujeitarem os poetas aos rigores da fita métrica. Eu aproveito a deixa e, no poema, passo dos poetas à poesia.
Há como que um "bloco lírico" na parte final do livro, notadamente entre "Pai" e "Amor". Qual a ideia de colocá-lo naquele ponto do livro --e como você pensou essas repartições?
De fato, é uma tendência que vem se delineando, talvez, desde "Lago, Montanha" (1983), essa de finalizar o livro com poemas de natureza lírica ou meditativa. Não sei a que atribuí-la, a não ser talvez a uma recusa progressiva de adotar as subdivisões tão comuns nos livros de nossos poetas modernistas. No que não tive muito sucesso, porque o procedimento adotado, se eliminou subtítulos explícitos não evitou a organização dos poemas em diferentes blocos. É preciso considerar que essas "separações" temáticas, em alguns casos formais, não são inteiramente "puras". Elas se misturam, às vezes pela necessidade de interferir com um poema à guisa de nota dissonante ou de comentário que bouleverse a mente do leitor já porventura em parte dissensibilizado pela inteligência e disciplina do livro. Às vezes, estruturas rítmicas ou frasais atraem ou repelem poemas isolados ou conjunto de poemas. O ritmo, aliás, é o fator essencial na organização dos meus livros e não se atém exclusivamente aos elementos provindos de sua materialidade sonora. Ele se arma também por fora, na teia de significados que o poema vai gerando através de procedimentos vários como a elipse e a lacuna, de modo a construir uma realidade psicológica e atingir a mente ou a emotividade do leitor.
Ao mesmo tempo o livro é impregnado de tremuras, mãos que tremem, velhos, fragilidade, ruína. É uma obra desesperançosa?
É. Mas talvez também não seja, na medida em que o poema "Através", que fecha o livro, ecoe por todo ele. Um eco amoroso, difuso, que não discrimine nem privilegie coisa alguma e não deixe de fora a finitude e a doença. Sou, ademais, um admirador da arte dos velhos, para começar pela do meu pai, entalhador, cujos cortes na madeira foram se tornando cada vez mais apagados, uma bruma. E o que dizer da de Rembrandt, da de Franz Hals, da de Goya? Do Drummond de "Boitempo"? Me esforço por seguir o exemplo deles.
O que você tem lido de modo geral? E de poesia? Percebe uma nova geração de poetas no Brasil? Destacaria algum/alguns nome(s)? Como comparar a tua geração com a atual?
Leio o quanto posso, de forma desordenada e simultânea; o que não é dizer que seja muito --a vida prática, mesmo a de um aposentado, exige muito. Na prosa, alguma coisa de Sebald e de Schnitzler. Na poesia, poetas nossos e de fora, de agora e de sempre, entre os quais destacaria os últimos livros de Eudoro Augusto. Também gosto de ler traduções de poesia. A tradução é sempre interessante, mesmo quando se tem acesso à língua original. Alguma coisa de crítica literária e de artes plásticas, de filosofia, só para perceber o tom, como bem observou um amigo, porque me falta a mente adestrada para vôos mais ambiciosos.
Depois da minha, já devem ter passado por aqui duas ou três gerações de poetas. Acho que a poesia que está sendo feita no Brasil é de boa, diria mesmo, de muito boa qualidade. Mais do que isso não saberia afirmar nem acrescentar. Não vale a pena citar nomes, pois a lista de merecimento é extensa.
O critério de geração é importante porque explica muita coisa que ocorre logo que o poeta começa a atuar com certo grau de autonomia, deixados para trás os anos iniciais de formação; momento em que começa a ouvir sua própria voz, a procurar seus pares para afinar seu instrumento pelo deles e participar da leitura que fazem da poesia que lhes interessa, da tradição ou não.
O tempo passa e essa referência geracional se atenua, desaparece mesmo: a poesia é um ente extremamente subjetivo, solipsista...
Do Itamaraty, além do sr., saíram escritores como Guimarães Rosa, João Cabral e Vinicius. Aparentemente já não há naquela casa tanta literatura de alto nível. Como vê a relação entre o papel de diplomata e o de escritor --como um influencia o outro?
Por favor, me ponha no andar de baixo e acrescente um quarto escritor --Raul Bopp-- ao grupo do andar de cima.
Não acho que a diminuição do valor da obra literária observada no presente seja exclusiva daquelas eventualmente cometidas por diplomatas. Se se comprovar essa queda de voltagem, será uma fenômeno de natureza geral e complexa, a envolver o papel da literatura --e das artes em geral, na cultura contemporânea.
O que mudou no perfil do Itamaraty que possa ter influído na relação dos diplomatas com a literatura (seriam hoje menos reflexivos e mais executivos, por exemplo?)?
A atividade diplomática tornou-se mais complexa, sem dúvida, do que era antes. A agenda exige cada vez mais conhecimentos especializados, o que demanda por sua vez uma formação rigorosa e permanente. É claro que tal premissa não favorece o poeta, pelo menos a ideia, muito própria e abstrata, do que faço do que deva ser um poeta. E há os exemplos, que não deixam de ser tenebrosos, do êxito obtido por um poeta como Wallace Stevens, que foi vice-presidente de uma companhia de seguros dos Estados Unidos ou como Paul Valéry, que foi encontrar o seu modo de ganhar a vida junto aos grandes banqueiros franceses. São exemplos notáveis da capacidade de sobrevivência de uma espécie, que sempre beira a extinção, em condições inóspitas, frigoríficas mesmo. No Itamaraty, em que, apesar de tudo, o ambiente não é tão gélido assim, acredito que o poeta das futuras gerações, que se sentir atraído pela galeria de notáveis que exibe a instituição, sempre arranjará jeito de nela se infiltrar. E resta sempre a via venturosa a céu aberto indicada para os de mais virtú, por um Baudelaire, um Rimbaud, um --degraus abaixo-- Bukowski.
O METRO NENHUM
Autor Francisco Alvim
Editora Companhia das Letras
Quanto R$ 33 (96 págs.)
Livraria da Folha
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