Surpresa em Cannes e no Globo de Ouro, Leviatã ridiculariza Putin
Tudo em relação ao filme "Leviatã" é uma surpresa. Trata-se do primeiro thriller social do diretor russo Andrey Zvyagintsev, conhecido pelos dramas familiares "O Retorno" (2003) e "Elena" (2011). Depois, encantou o último dia do Festival de Cannes, altura em que geralmente o evento esfria, e conquistou o prêmio de melhor roteiro.
O comitê russo o escolheu ainda como representante do país à disputa de uma vaga no Oscar, uma surpresa, já que o ministro da Cultura, Vladimir Medinsky, demonstrou descontentamento com o filme.
"Deixamos todas as flores crescerem, mas apenas regamos aquelas de que gostamos", declarou o político, irritado por ter bancado 35% do orçamento de um longa que pinta a política russa como um antro de corruptos.
Anna Matveeva/Divulgação | ||
Cena do filme 'Leviatã', vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro em 2014 |
Houve ainda uma vitória inesperada no Globo de Ouro, no domingo (11), quando derrotou o favoritíssimo "Ida", do polonês Pawel Pawlikowski, como filme estrangeiro. A maior surpresa de "Leviatã": seu diretor diz que não fez um filme político e que odeia falar sobre o assunto.
Mas o longa escapa do declarado viés apolítico de seu criador. "Leviatã" é um retrato cruel e pessimista da Rússia de Vladimir Putin.
É verdade que Zvyagintsev foi sutil. No drama, ele utiliza um núcleo familiar de uma pequena cidade pesqueira ao norte da Rússia, onde a crise econômica produz uma praia fantasmagórica com carcaças de barcos e de baleias.
Kolya (Aleksey Serebryakov) mora com a mulher (Elena Lyadova) e o filho (Sergey Pokhodaev) até descobrir que o prefeito (Roman Madyanov) desapropriou suas terras para a construção de um hotel.
Sabendo que a única opção contra um sistema corrompido é ser mais durão e ameaçador que seus inimigos, Kolya recorre a um amigo advogado de Moscou (Vladimir Vdovichenkov).
"É uma história arcaica, que vem do 'Livro de Jó' ou de 'Michael Kohlhaas'. Poderia acontecer em qualquer país ou governo", desconversa o cineasta. "Temos uma população de 140 milhões de pessoas, não somos todos monstros. Precisamos ser cautelosos para não demonizar os russos, por isso não quero falar muito sobre política."
A inspiração para "Leviatã" veio, segundo Zvyagintsev, de um caso real que aconteceu nos Estados Unidos. "Um homem perdeu sua terra quando não quis vendê-la para empresários e pegou um trator e demoliu três prédios públicos como vingança."
Ele se refere à história de Marvin Heemeyer, de Granby, no Colorado: sob a influência de uma família rica que queria suas terras, o conselho da cidade o processou por "interferir no esgoto" e por "sucatas no jardim", levando sua loja de escapamentos à falência.
Heemeyer construiu um tanque de guerra com seu trator, destruiu 13 edifícios, inclusive a prefeitura de Granby, e se matou com um tiro. "Essa história assombrou minha mente por seis anos, mas eu sabia exatamente o que fazer e sabia que precisava ser na Rússia", conta o diretor.
É quando as nuances locais de Zvyagintsev tomam conta da tela. O padre joga a comunidade contra Kolya, fechando o cerco ao lado do prefeito –sempre mostrado com uma foto de Putin radiante em seu escritório.
"Somos companheiros de trabalho", diz o religioso ao político. "A igreja na Rússia sempre teve uma ligação forte com o poder. Eu não inventei essa frase, ela foi dita por um padre real no meu país", afirma o cineasta.
"Somos um povo mais próximo da Ásia do que da Europa, onde o homem comum pode resistir contra o sistema. No meu filme, o poder local reflete algo maior."
Mesmo assim, o governo não censurou a trajetória da produção. A única mudança ocorreu em julho, quando entrou em vigor uma lei na Rússia proibindo palavrões e obscenidades em obras de arte. Zvyagintsev cortou palavras para o filme entrar em cartaz.
O cineasta é otimista. "Meu longa é sombrio, mas não representa o fim. É só uma parcela de nossa realidade. Há muita luz no mundo".
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