CRÍTICA
Miguel Gomes acerta na fábula sobre a crise 'As Mil e Uma Noites'
Para que serve o cinema? Para nos distrair com histórias, dizem uns. Outros pensam que é para nos levar a descobrir um pouco mais de nós e do mundo, identificar semelhanças e reconhecer diferenças.
Em "As Mil e Uma Noites", o diretor português Miguel Gomes retoma essa questão e suas respostas para criar um filme com relatos engraçados, tristes, trágicos e absurdos.
"O Inquieto" é o subtítulo do primeiro volume, em cartaz. Os outros dois serão lançados na próxima semana e podem ser assistidos sem precisar do "anteriormente" usados nas séries de TV.
Os casos narrados foram inspirados em histórias reais ocorridas durante a crise econômica em Portugal que eclodiu em 2011. Esse tipo de situação, contudo, costuma aparecer desencarnado na imprensa, na forma de cifras e efeitos. Viver a crise e sobreviver a ela têm outra dimensão.
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Crista Alfaiate e Adriano Luz em cena de 'O Inquieto', primeiro volume de 'As Mil e Uma Noites' |
O projeto de Gomes origina-se no impulso de registrar a vida em condições impróprias. Mas nada aqui se resume a documentar fatos e relatos. O filme demonstra que sobreviver é, antes de tudo, um ato de imaginação.
No fim do prólogo, o diretor aparece no papel de um cineasta que, em crise, reflete: "Sinto que estou no olho de um furacão e, ao mesmo tempo, num beco sem saída. Pensei que podia fazer um bonito filme, cheio de histórias maravilhosas e sedutoras. Ao mesmo tempo, pensei que o filme podia acompanhar, durante um ano, a atual e miserável situação de Portugal".
E expõe o impasse: "Qualquer cavalgadura percebe que, com mais ou menos jeito, se pode fazer um destes dois filmes. Mas que é impossível fazer os dois ao mesmo tempo. É uma questão de bom senso. Não se consegue fazer um filme militante e que, logo, esqueça a militância e se ponha a escapar da realidade. Isso é uma traição. Um dandismo".
Bastaria, portanto, suspender as fronteiras, misturar fato e ficção e, assim, atender ao pré-requisito dos que veem nesse procedimento a novidade do cinema contemporâneo?
Para que, então, tomar emprestado o título de uma obra universal se, no início, um letreiro esclarece que "não é uma adaptação do livro 'As Mil e Uma Noites', embora se inspire na sua estrutura"?
Enquanto os letreiros explicam a situação de Portugal, "refém de um programa de austeridade", o cineasta, em voz off, evoca a situação de Sherazade frente ao rei tirano a quem ela conta 1.001 histórias para adiar seu próprio fim.
Além da associação instantânea a partir da posição de refém, outra semelhança se desvenda aos poucos: na mesma medida que Sherazade narra histórias para sobreviver, o filme de Gomes narra experiências de sobrevivência do homem comum, invisível na lente macro do jornalismo.
Ambos fabulam sem precisar distinguir fato e ficção, e partem de casos peculiares, individuais, que ressoam o universal. A proposta é de tal modo simples que dar qualquer cambalhota conceitual para explicar cairia no vazio.
O ato de narrar talvez seja o que nos torna humanos. Assim como Abbas Kiarostami, Gomes mostra que contar mil ou uma história dá a certeza de que a vida continua.
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