Crítica
Extratos sublimes fazem de 'Graziella' um livro imortal
Quem ainda lê Alphonse de Lamartine, o jovem que em 1820 introduziu o romantismo na poesia francesa, revolucionando-a, e cuja fama espalhou-se por todo o Ocidente, até o Brasil, onde ele teve inúmeros devotos?
Quem ainda se lembra de Lamartine, que, homem maduro, se imiscuiu na política e, passando de reacionário a liberal, exerceu papel central na Revolução de 1848?
Quem ainda se interessa pelos prolíficos relatos de Lamartine sobre a França pós-1789, suas "Confidências", as "Viagens ao Oriente" e os romances que foram best-sellers, como "Graziella" (1852), relançado agora no Brasil?
Leia trecho de "Graziella", romance romântico de Alphonse de Lamartine
Wikipedia | ||
Lamartine retratado pelo fotógrafo Nadar, em 1856, em impressão em papel albuminado |
O tempo é um severo crítico literário. Sucessos de uma época podem virar poeira em poucas gerações –o que não se dirá em séculos. Raros autores sobrevivem a tal demolição, às vezes injusta.
Para Lamartine (1790-1869), a demolição começou na geração seguinte. Verlaine reclamou das "jeremiadas" de sua poesia. Rimbaud disse que ele tinha tido suas "visões", mas fora incapaz de se libertar das formas antigas (no caso, o classicismo francês, que Lamartine ajustou ao pathos romântico).
Mais cruel foi Flaubert, que o chamou de "eunuco espiritual" e desbancou "Graziella" privadamente em uma carta a Louise Colet, de 24/4/1852: "É uma obra medíocre, embora seja a melhor coisa que L[amartine] fez em prosa".
Com um misto de ojeriza e fascínio, Flaubert foi ainda mais longe: fez de "Paulo e Virgínia" (1789) –o livro de Bernardin de Saint-Pierre que é crucial na narrativa de "Graziella"–um dos romances que insuflam delírios na cabeça de vento de Emma Bovary.
Muita coisa sucumbiu na obra de Lamartine, mas sua poesia, para bons ouvidos, conserva uma intensa vibração, aqui e ali. E os romances guardam atributos preciosos que vale a pena (re) descobrir.
Por isso, o lançamento de "Graziella" é uma boa surpresa: traz Lamartine de volta às livrarias brasileiras e o faz com uma cuidadosa tradução de Sandra Stoparo.
Graziella é a adolescente italiana com quem o narrador, um jovem aristocrata francês, se envolve numa viagem ao sul da Itália –viagem que o leva a descobrir ao mesmo tempo a natureza indomável, a vida da gente pobre e o amor.
A história sentimental é tocante, pela delicadeza e minúcia com que expõe os complicados influxos do sensualismo na puberdade, quando o desejo costuma se dissolver em brincadeira, e vice-versa.
"É mais fácil desenhar um anjo que uma mulher", criticou Flaubert. Sim, mas o anjo Graziella se faz mulher no livro, para surpresa do narrador, que, esteta meio desavisado meio perverso, havia ele próprio inoculado na menina o vírus romântico, ao ler para ela "Paulo e Virgínia".
As páginas finais de "Graziella" são lacrimosas, mas extraordinárias. Não são as únicas em que Lamartine esbanja seu gênio. A descrição de um naufrágio, as visões da paisagem italiana, a descoberta da pobreza (embora edulcorada e paternalista), além da espantosa cena em que a adolescente italiana se veste "à francesa" para agradar o amado –são esses extratos sublimes que fazem de "Graziella" um pequeno livro imortal.
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