Elena Ferrante existe e não há motivo para buscar-lhe outro nome
O meio literário praticamente não falou em outra coisa desde que, no domingo (2), o italiano Claudio Gatti publicou no jornal "Il Sole 24 Ore" –e, simultaneamente, em inglês, francês e alemão– sua pesquisa.
Elena Ferrante, a autora da aclamada Série Napolitana, seria a tradutora de origem germânica Anita Raja, nascida em Nápoles, mas crescida em Roma, onde vive desde os três anos.
A convicção existia e pululava desde ao menos 2014. O nome era ventilado em conferências, artigos, tuítes.
Em outros momentos, num movimento que não chega a espantar, chegou-se a argumentar que Ferrante seria o escritor napolitano Domenico Starnone, o marido de Raja.
Gatti trouxe as provas –um cruzamento de registros imobiliários, aumentos de vendas na E/O propelidos por Ferrante, maior estrela da casa editorial, e os altos valores pagos pela editora a Raja no mesmo período, muito acima dos proventos normais de um tradutor.
Esperava talvez, diante delas, uma confissão que não veio.
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A tradutora Anita Raja, apontada por jornalista como a pessoa por trás do nome Elena Ferrante |
O homem não suporta bem os segredos, e Gatti é um repórter investigativo. Seu papel é revelá-los. Seu trabalho, como o de Ferrante, lê quem quer.
As vendas dela subiram após a publicação do texto dele, sobretudo as do primeiro tomo de sua tetralogia, "A Amiga Genial", o que indica que novos leitores tiveram sua curiosidade despertada pelo ar de fofoca, amplificado por meios que fizeram até listas resumindo o quiproquó.
Um dos artigos, publicado no blog da "London Review of Books" (por um anônimo, diga-se), intitulava-se "por que estragar a diversão?".
O título sintetiza o desconforto.
Elena Ferrante construiu sua carreira literária, desde 1992, sob esse nome. Sua recepção na Itália aumentou com o estouro internacional da Série Napolitana, tetralogia que percorre subgêneros, como o romance de formação e o romance social, em que a narradora, uma escritora, revela tudo o que sabe sobre sua amiga desaparecida.
Nela, Ferrante deu um passo ousado. Nomeou sua narradora Elena. Entrou nas convenções da autoficção e fez muitos leitores procurarem nos livros não a história da personagem, mas a da autora, deixando-lhe pistas possivelmente falsas, de uma infância miserável superada pela força da literatura.
O gesto talvez tenha sido uma crítica a essas mesmas convenções. Com certeza, foi um jogo literário.
Até a fama desses romances, acolhidos com entusiasmo tanto pelo público como pela crítica, poucos terão se perguntado quem era a escritora escondida.
A insistência com que se buscou essa revelação não é só uma invasão da sua privacidade, como clamaram seus editores, mas de sua ficção. É exigir os fatos reais quando se tem os narrados.
Elena Ferrante existe e não há motivo para buscar outro nome.
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