CRÍTICA
Poesia de Carlito Azevedo dá a cara para bater
Durante os primeiros anos da Revolução Russa, Marina Tsvetáieva conta ter avistado um cão que carregava no pescoço um cartaz com os dizeres: "Matem Lênin e Trótski ou eu serei comido". É esse mesmo cão o narrador do primeiro dos dois longos poemas do "Livro das Postagens", de Carlito Azevedo.
É ele que, como um estribilho reiterativo durante o poema, reclama a presença do autor, que não está "aqui".
Da mesma forma como o autor do cartaz visto por Tsvetáieva, também muitos dos autores de poemas que percorrem o espectro do século 20, até o 21, lançam sobre seus personagens a carga de uma voz que denuncia, lamenta, sofre, enquanto eles mesmos mantêm-se inatacáveis em seu trono de artista.
Adriano Vizoni/Folhapress | ||
O escritor Carlito Azevedo recita poema na Flip |
O cão ocupa o lugar de vítima e algoz, enquanto ninguém age para salvar ou matar os Trótskis e os Lênins que nos oprimem. Não é o caso da própria Marina que, como conta o cão, num verso impressionante, "deu de comer à corda o próprio pescoço". Mas quem é que, agora, está fazendo isso? Quem está correndo riscos?
O cão deste poema, num aqui e num agora permanentes, lastima o fato de a própria poesia transformar o real em palavras que, uma vez ditas, por mais que apontem para o horror, também nos afastam dele.
Como superar esse abismo e transpô-lo? "O autor deveria estar aqui. Visa a realidade e depois/ se proíbe os meios de atingi-la" Pois Carlito não se furta a estar ali/aqui.
É ele o cão, é ele o autor cuja presença o cão demanda, é ele que assume não estar – estando. Num mundo teatral, em que todos estamos construídos de papelão, virtualidades e simulacros, um cão pede que "choquemos ovos no despenhadeiro", que vejamos, a um palmo do olho, "a pinça do escorpião".
E é este mundo quase despencando que lemos no segundo poema: "O Livro das Postagens". A partir da imagem de uma garota que posa para uma foto durante a ditadura, como se estivesse em situação normal, Carlito constrói uma montagem de cartas, postagens, fragmentos de conversas, referências externas, atualizando a ideia da alegoria feita de ruínas, neste caso ruínas de discursos, perguntando-se sobre o significado das imagens e sobre a possibilidade de agir em tempos trágicos que, como suspeitamos, são todos os tempos.
É preciso dizer, mas é impossível dizer e não se escapa disso, o que, em si mesmo, é também uma tragédia. "Tocar sempre a nota que impeça os outros músicos de tocar a nota que eles imaginam que vão tocar", como fazia Ron Carter, talvez seja uma alternativa. Não fazer o que se deve fazer, por mais frágil que seja a condição do poeta, é um jeito do poeta aparecer e de, junto com o cão, expor-se sem medo.
"O Livro das Postagens" se entrega e, na fuça do escorpião, dá a cara para bater.
NOEMI JAFFE é crítica literária e autora de "Írisz - As Orquídeas" (Companhia das Letras)
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade