A fé cristã nasceu universalista, ao contrário do islamismo
RESUMO A "Ilustríssima" adianta trecho de "A Nação", que o antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950) deixou inacabado. O selo Três Estrelas lança agora a edição brasileira. Na obra, Mauss examina a formação das modernas nações capitalistas e como elas tendem a criar uma ordem internacional de pendor socialista.
*
O direito internacional, público e privado, desenvolveu-se no Ocidente em uma atmosfera em parte latina e em parte cristã. Poderíamos até dizer que precisava simultaneamente, além de todas as condições descritas da civilização ocidental, desses dois elementos de moral: a noção do direito nacional –"discretæ gentes"– e a de fraternidade humana; um só não bastava. Prova disso é a notável ausência desse direito em todos os países da Europa Oriental, de tradição bizantina, imperial, maquiavélica. [...]
A Igreja Romana, em meio às ruínas do Império do Ocidente, foi herdeira teórica da paz romana e grande inovadora de coisas e ideias internacionais. Seria extremamente incorreto dela fazer abstração. A religião cristã, desde São Paulo, era profundamente universalista. Cristo salvara todos os homens, não só um povo e os que se converteram a esse povo. Pois uma diferença importante separa o cristianismo do budismo, que o precedeu, e do islã, que o sucedeu. Também Buda salvou todos os homens, mas apenas fora da vida secular, na igreja, ou melhor, no mosteiro. Seu reino é extraterrestre e filosófico. Somente ao final da reencarnação é que todos os homens serão salvos. O futuro Buda Maitreya, criação exclusiva do budismo do Norte, pode ser posterior a Cristo; ainda não nasceu aquele que fará reinar o amor, a amizade e a paz entre os homens. Ainda é um simples Bodhisattva, que nasce e renasce; centenas de milhões de homens esperam por ele no Oriente. O budismo, religião de um deus salvador universal, porém absolutamente desaparecido, não é mais que pura religião.
Nesse sentido, o islã é uma regressão em relação ao cristianismo. O Profeta decerto também "viu" a salvação dos homens, e Alá, por sua boca, a ela conclama o Universo e lhe promete a paz ("islã" significa paz e salvação). No entanto, o mundo islâmico inteiro concebe a si mesmo como a uma espécie de vasto povo eleito; trata-se, no fundo, de um judaísmo com proselitismo. A unidade da língua sagrada, da circuncisão, da lei civil criminal e religiosa, até mesmo a unidade política em torno do califa, em torno de duas capitais, Meca e Istambul, o vaivém dos peregrinos, as sociedades secretas e as ordens religiosas, isso tudo faz com que se aparente mais a um movimento de nacionalismo que de internacionalismo. Some-se a isso a luta secular contra o cristianismo, que não é, de modo algum, vencedor, sobretudo na África, assim como a atual necessidade de independência dos povos muçulmanos colocados sob tutela por dois ou três povos cristãos, e o islã se mostrará com mais fortes tendências à unidade nacional que à unidade humana, algo que hoje, aliás, é mais perceptível que nunca.
O mundo islâmico está tomando consciência de sua unidade. Os turcos não encontraram melhores protetores que os muçulmanos da Índia. Em todos os países do Norte da África, onde o muçulmano se instrui, tem acesso à civilização, enriquece, uma crescente necessidade de independência política vem surgindo, como atestam as dificuldades encontradas pela Inglaterra no Egito e por nós na Síria. [...]
No entanto, é, evidentemente, um absurdo tratar o islã como religião pura, sem nada de temporal, buscando garantir tão somente a salvação no além e podendo ser exilada da esfera laica da vida nas regiões do ideal, como foi o cristianismo. O islã ainda terá seus madis, seus profetas guerreiros, seus messias, que o tornarão um povo seguro de si antes de torná-lo uma nação e, com mais forte razão, uma inter-nação.
O cristianismo dos três primeiros séculos foi, ao contrário, vigorosamente universalista. Estendeu a toda a humanidade o respeito à pessoa humana, que, juntos, gregos e judeus tinham fundado –os primeiros, em moral, sobretudo com os estoicos; os segundos, em religião, sobretudo com os profetas pós-exílicos (Lev. 19,18: "Amarás teu próximo como a ti mesmo"; Atos, 15,15, citando Jer. 12,15; Gál. 3,28)– e que os romanos tinham fundado em direito, mas sempre dentro de um povo, das cidades, da nação. Entretanto, foi Paulo, e talvez em um momento preciso de sua missão, aquele que se manifesta na Epístola aos Gálatas, quem, à imagem de Cristo, tornou todos os homens "filhos de Deus" (3,26), disse a eles que não havia diferença entre o homem livre e o escravo, que não existia liberdade senão na fé e que fora "para a liberdade que Cristo libertara os homens" [Gál. 5,1]. Ainda se tratava então, sem dúvida, da liberdade buscada na libertação da carne e da querela da circuncisão. Porém, foi esse o momento decisivo em que os mesmos direitos e os mesmos privilégios foram reivindicados para todos os homens que aderiam a uma mesma fé. Essa moral desenvolveu-se de maneira magnífica, e a Igreja Romana, que se diz católica, ou seja, universal, permanece, em parte, dentro da autêntica tradição de seu tempo. Recusa de portar armas, reprovação da guerra, ideal de paz –inúmeros mártires, inúmeras igrejas foram até esse ponto e ainda vão; a prova: conscientious objectors [objetores de consciência], que as leis de circunscrição inglesas foram obrigadas a reconhecer. A semente nunca cessou de fermentar nas almas cristãs.
No entanto, as igrejas, com sua vitória nos séculos 4º e 5º, triunfaram. Foi quando mudaram sua forma política. Tal como as antigas religiões que haviam substituído, sobretudo a romana, tornaram-se instrumentos de reinado nas mãos dos imperadores, tornaram-se imperiais. A legenda "In hoc signo vinces" [com este sinal vencerás] assinala o fim do período puramente humanístico do cristianismo. Foi um compromisso, os imperadores renunciaram a sua divindade, a Igreja renunciou a sua humanidade. Ela foi nacional por um tempo, o tempo que durou o Império; manteve-se bem pouco internacionalista ou mesmo proselitista no Oriente ortodoxo, onde o imperador para o qual se celebraria a missa em Santa Sofia se identificou com o futuro patrono da Igreja. No Ocidente, tornou-se ferramenta dos reis e imperadores herdeiros do Sacro Império, isso quando eles não se sujeitavam a ser seus instrumentos. [...]
O cânone de Gregório 2º é a base e o princípio do direito internacional público (Decretal, 9, 2). A unidade do direito canônico na cristandade muito contribuiu para a unidade dos direitos modernos, a qual, por sua vez, permitiu a instauração do direito internacional privado. Esse internacionalismo, esse pacifismo, essa moral foram pouco aplicados nos períodos violentos. Houve, porém, um momento, na época de Inocêncio 3º, em que a Igreja chegou a acreditar que todos os reis consentiriam em se tornar vassalos dos papas, mas isso não passou de teoria. Não importa; já era alguma coisa essas ideias serem proclamadas, por vezes observadas, sempre respeitadas a título de ideal.
Por fim –e esse não é o menor dos fatos–, a Igreja fundou e desenvolveu uma educação uniforme de ponta a ponta da Europa católica. As universidades são obra sua; até o século 14, foram todas essencialmente clericais, daí a unidade de doutrina, de língua –o latim–, de ciência em toda a Europa. Só mais tarde, depois da lenta vitória das línguas ditas vulgares, depois da Reforma, da Renascença, é que a universidade deixou de ser coisa da Igreja e, portanto, internacional. Contudo, as pretensões teológicas da Sorbonne duraram mais tempo que o caráter da educação, que o caráter clerical da universidade em si. A universidade tem origem internacional, universal. Universidade não quer dizer tão somente a das artes, do direito e da teologia, mas também o caráter universal dos ensinamentos transmitidos de maneira idêntica às "nações", pois é no jargão universitário e dos cônsules que se desenvolveu, principalmente na Idade Média, o próprio conceito de nação.
A Reforma pôs fim a tal movimento. Por esse prisma, poderíamos tachá-la de reacionária, se não soubéssemos que há que passar pelo estágio das nações antes de realizar a inter-nação. As pretensões da Igreja eram insuportáveis para os grandes Estados em via de formação; era necessária a independência dos poderes políticos, assim como devolver à Igreja a sua verdadeira função espiritual. Uns, a maioria dos povos de origem germânica, constituíram então igrejas nacionais, reformadas; outros, a maioria dos povos romandos, formaram Estados laicos, embora continuassem a se autodenominar mui cristãos, christianissimus e apostólicos. Foi esse um momento importante na vida das nações.
MARCEL MAUSS (1872-1950) foi um sociólogo e antropólogo francês.
DOROTHÉE DE BRUCHARD é tradutora.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade